Crianças ficam sem escola – Reportagem assinada por Carlos Petrocilo e Isabela Palhares na Folha de S. Paulo aponta que a desarticulação entre o governo de São Paulo e a prefeitura da capital deixou cerca de 14 mil crianças sem escola.
Leia a reportagem abaixo:
“A mochila, com estampa da personagem Gata Marie e de rodinhas, está na ponta da cama. Isabella, 6, não se afasta do material escolar nem para dormir. A ansiedade da menina pela volta às aulas se transformou em angústia para a mãe, Talita Carolina dos Santos Fiuza, 26.
A poucos dias do início do ano letivo nas escolas municipais, na segunda-feira (7), Talita não conseguiu vaga para a filha na rede pública – as aulas, pelo estado, começaram na quarta (2). Uma situação que se repete por toda a cidade de São Paulo.
“Não acho justo tirar este direito da Isabella”, afirma Talita, moradora do Jardim Apurá, na zona sul.
A Folha apurou que quase 14 mil crianças estão na fila por uma matrícula no 1º ano do ensino fundamental na capital paulista.
São 1.300 alunos somente na DRE (Diretoria Regional de Educação) de Santo Amaro, na zona sul, e quase 2.000 na unidade de Itaquera, na zona leste. São Paulo é dividida em 13 DREs.
Há anos a cidade não enfrenta problemas para garantir vagas no ensino fundamental, etapa em que a frequência escolar é obrigatória, de acordo com a Constituição. Pelo menos desde 2007, dado mais antigo disponibilizado pela prefeitura, não há registro de espera por matrícula nessa etapa.
Para as famílias que buscam vaga, a explicação dada por servidores das diretorias de ensino e das escolas é de que o déficit deste ano é consequência da forma como o governo João Doria (PSDB) ampliou o número de escolas estaduais em tempo integral e da falta de articulação com a prefeitura, sob gestão Ricardo Nunes (MDB).
A legislação nacional estabelece que as matrículas na rede pública nos anos iniciais do ensino fundamental são de responsabilidade conjunta de estados e municípios. Na capital paulista, nos últimos anos, as escolas estaduais têm atendido cerca de 60% das crianças nessa etapa, e as municipais, 40%.
Uma das principais apostas de Doria como vitrine para a educação paulista, a expansão de escolas estaduais com período integral foi intensificada nos últimos dois anos. O número de unidades com o programa quase quintuplicou desde 2019, passando de 417 para 2050, em 2022.
Como as escolas passaram a atender os alunos por mais tempo, o número de turmas e, consequentemente, de vagas disponíveis na rede estadual diminuiu, segundo servidores ouvidos pela Folha.
Questionada, a Secretaria Estadual de Educação não informou se adotou alguma estratégia para manter o mesmo número de matrículas nessa etapa de ensino. Também não informou quantas vagas e turmas foram fechadas com a expansão do ensino integral.
A queda de vagas na rede estadual não foi articulada com a Prefeitura de São Paulo para que a demanda fosse absorvida por escolas municipais, que já atuavam próximas do máximo da capacidade.
Pela legislação municipal, as turmas de 1º ano podem ter no máximo 30 alunos por sala. Assim, para atender mais crianças nessa série, seria necessário ampliar o número de salas nas escolas, o que demanda reformas dos prédios, ou a construção de novas unidades escolares.
Procuradas pela Folha na quarta (2), as secretarias municipal e estadual não responderam se há um prazo para matricular essas crianças nas escolas.
Em nota, a secretaria estadual apenas reconheceu que as matrículas do ensino fundamental e médio são compartilhadas com o município. “Em alguns casos, erros de endereço e outras informações desatualizadas podem atrasar o processo. As compatibilizações de matrículas seguem ocorrendo e serão finalizadas o mais breve possível. O Centro de Matrículas do estado está em contato constante com a rede municipal para garantir vaga para todos os estudantes”, diz.
Já a secretaria municipal, informou que tem “ampliado gradativamente o número de turmas para atender a demanda da população” e também reforçou que a responsabilidade é compartilhada com a rede estadual. Segundo a pasta, até esta quinta (3), o número de turmas de 1º ano nas escolas municipais era de 1.641 – 2,3% a mais em relação ao ano passado, quando eram 1.603. “Entre 2019 e 2021, já havia sido feita uma ampliação de 10% nas turmas da mesma faixa etária”, diz.
Alessandra Gotti, doutora em direito constitucional e presidente do Instituto Articule, diz que a situação reflete a falta de planejamento e articulação entre as redes.
“A responsabilidade pelos anos iniciais é compartilhada pelo estado e município, o governo estadual não pode desenvolver uma política sem pensar no impacto que isso pode trazer para a cidade. A política de expansão de escolas em tempo integral é muito importante e bem-vinda, mas precisa ser pensada para não deixar crianças desassistidas, sem o direito fundamental de receber educação.”
Diretor do Crece (Conselho de Representantes dos Conselhos de Escola) Santo Amaro, Amilton Amorim, disse que desde dezembro as famílias da região estão em busca de vaga para as crianças que saíram da pré-escola.
“O setor de demanda da prefeitura informou que os alunos deveriam ser matriculados na rede estadual, mas as escolas do estado dizem não ter vaga porque diminuíram as turmas depois de terem se tornado de tempo integral. O que adianta atender bem algumas crianças e deixar milhares fora da sala de aula?”, questiona.
No Jardim Riviera (zona sul), Cássio Haroldo Ramos Ribeiro, 63, está a uma quadra da escola estadual Professora Leila Sabino. Mas lá foi informado de que não há vaga para sua filha, Sarah, 6. Até o ano passado, a menina estudava no CEU Guarapiranga, a quase 1 km de sua residência.
“Geralmente as crianças quando saem do CEU Guarapiranga são transferidas para o Leila Sabino [para cursar o ensino fundamental], que não tem espaço físico e a única sala da 1ª série já tem 42 alunos. No CEU também não tem mais vaga”, afirma Ribeiro, um arquiteto desempregado.
“Não há previsão nenhuma de quando minha filha terá uma vaga. No CEU [Guarapiranga] me passaram o contato da DRE Campo Limpo, mas ninguém atende o telefone.”
Já Luiz, 8, irmão de Sarah e que já frequentava o colégio estadual Professora Leila Sabino, tem a sua carteira garantida no terceiro ano do ensino fundamental. Por decisão dos pais, Luiz não frequentará as aulas enquanto Sarah não conseguir a sua vaga.
“Imagina a frustração da minha filha, ver o irmão indo para escola. A melhor amiguinha dela, nossa vizinha e com quem a Sarah estudou até o ano passado [no CEU] conseguiu uma vaga no Leila Sabino. Não sei qual é o critério, se é por ordem alfabética, ninguém explica, informa”, afirma o pai.
Diante da falta de informação e de perspectivas, os pais têm percorrido uma maratona em busca de ajuda, batendo na porta do Conselho Tutelar, Defensoria Pública e gabinete de vereadores em São Paulo.
“O que me preocupa muito é por ser a primeira série, como meu filho vai aprender a ler, escrever. E eu preciso trabalhar, não tenho com quem deixá-lo”, relata Adrielly Santos Alves da Silva, mãe de Gabriel, 6.
Na Câmara Municipal de São Paulo, em sua primeira sessão legislativa do ano, Toninho Vespoli (PSOL) e Sidney Cruz (Solidariedade) expuseram o problema. “Peço ao nosso secretário [municipal] de Educação, Fernando Padula, ajuda. Muitas mães estão no gabinete em busca de ajuda porque estão com dificuldades para matricularem seus filhos no primeiro ano do ensino fundamental”, discursou Cruz, na terça (1º).”
Foto: Divulgação/ Secretaria Municipal de São Paulo
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