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A CLT é fascista? Historiador responde em entrevista ao BRI

A CLT é fascista? – Nos últimos anos, não foi raro ouvir ou ler esta “acusação” contra a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) por parte de grupos liberais conservadores – um paradoxo cada vez mais comum na sociedade moderna, isto é, de pessoas que se dizem “liberais na economia, mas conservadores nos costumes”.

Nestes tempos modernos em que contrassensos são aceitos como virtudes, os ataques à CLT se tornaram cada vez mais comuns. “O problema do Brasil é que o trabalhador tem muitos direitos”, é uma frase que tem sido repetida à exaustão. Não é coincidência que o ex-presidente do Brasil tenha sido eleito em 2018 dizendo que os brasileiros teriam que escolher entre “direitos ou empregos”.

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A Reforma Trabalhista de 2017 já anunciava a ideia de que a CLT era “ultrapassada” e que “modernizar” as relações de trabalho era a saída para criar empregos. A reforma foi aprovada, enfraquecendo a CLT, desprotegendo trabalhadores e asfixiando sindicatos, mas os novos empregos não vieram.

Com o novo governo eleito, um grupo de trabalho foi formado para debater a revisão de pontos sensíveis da reforma de 2017, que na visão de especialistas, fez explodir no país a informalidade e criou uma epidemia de trabalho escravo.

Mas afinal, a CLT é fascista? Para responder essa pergunta, o Brasil Independente conversou com o historiador Francisco Quartim de Moraes, doutor em História Econômica pela FFLCH-USP e autor do livro “1932: A história invertida”. Quartim refuta tal afirmação e explica em entrevista os fatores que deram origem à CLT brasileira.

“Getúlio Vargas não era fascista, sua corrente política e ideológica antecede em mais de 100 anos o fascismo. Ele era um positivista da linha de Saint-Simon e Júlio de Castilhos. As posições políticas de Vargas, ao longo de todo o século XX, são amplamente registradas e conhecidas. Tampouco a CLT teve inspiração fascista. Boa parte de suas leis foram redigidas por militantes anarquistas e socialistas”, afirma o historiador.

Confira abaixo a entrevista na íntegra:

BRI: O senhor é um notório pesquisador da Era Vargas e da origem dos pensamentos e acontecimentos que culminaram nela. Uma das grandes polêmicas envolvendo esse período é a acusação de que Getúlio Vargas era fascista e a prova cabal seria a “inspiração” que nossa CLT teve da Carta del Lavoro, conjunto de leis trabalhistas do fascismo italiano. Afinal, a CLT é fascista?

O senhor e o notório é por conta de vocês, mas agradeço a parte elogiosa. Primeiro devo esclarecer que a Carta del Lavoro não era um conjunto de leis trabalhistas, era um manifesto programático em que se defendiam alguns princípios que, aparentemente, visavam a defender o trabalhador. As recomendações desta Carta, que teve uma função mais propagandística que jurídica, nunca saíram do papel. Isto já marca uma grande diferença com a CLT. Esta sim é um agrupamento de várias leis trabalhistas brasileiras. Algumas delas são, inclusive, anteriores ao fascismo, ainda que a maior parte date dos períodos 1930-1934 e 1937-1943.

Getúlio Vargas não era fascista, sua corrente política e ideológica antecede em mais de 100 anos o fascismo. Ele era um positivista da linha de Saint-Simon e Júlio de Castilhos. As posições políticas de Vargas, ao longo de todo o século XX, são amplamente registradas e conhecidas.

Tampouco a CLT teve inspiração fascista. Boa parte de suas leis foram redigidas por militantes anarquistas e socialistas.

BRI: De onde surgiu essa ideia de que a CLT é fascista? A quem interessa essa vinculação?

A vinculação começa com Vargas. O primeiro a acusar Vargas de fascista foi o brilhante intelectual comunista Octávio Brandão no ano de 1929. O único que tem alguma razão em suas críticas. É que Vargas fez um elogio ao modelo corporativista fascista em uma entrevista para um jornal argentino neste ano. Então Brandão, intendente do Distrito Federal (cargo hoje conhecido como o de vereador), criticou o elogio ao corporativismo feito por Vargas. Na época a terceira internacional vinha numa linha dogmática chamada de “guerra de classe contra classe”, em que preconizava que todo social-democrata seria um “social-fascista”. Essa tese sectária foi abandonada pois a internacional percebeu que ela facilitou a ascensão do nazifascismo sendo substituída pela linha da “frente ampla contra o fascismo”.

Entrementes, depois da denúncia de Brandão, alguns comunistas mas especialmente, os militantes anarquistas brasileiros passaram a chamar a lei sindical de 1931 de fascista pois ela definia a unicidade sindical. Acontece que esta lei foi inteiramente redigida por dois dos militantes socialistas mais importantes da história do Brasil no início do século XX; Joaquim Pimenta e Evaristo de Moraes.

Os dois tinham o cargo de consultores do revolucionário Ministério do Trabalho que havia sido formado depois da tomada de poder em 1930 e nesta posição redigiram várias das leis trabalhistas do período, boa parte delas consolidadas em 43 na CLT.

A acusação de que unicidade sindical é uma ideia fascista é absurda. Os comunistas, pelo menos na linha leninista, sempre defenderam a unicidade sindical. O próprio Lênin, antes e depois da Revolução de 1917, defendeu a unicidade sindical contra as posições que ele chamava de “fracionistas”.

A vinculação entre CLT e o fascismo foi depois encampada pelos liberais, ganhando bastante projeção na famosa polêmica entre Oliveira Vianna e Valdemar Ferreira em torno da Justiça do Trabalho. Os que denunciam essa alegada vinculação pretendem, na verdade, confiscar direitos dos trabalhadores e suprimir a CLT.

Outro fato do qual estou convencido é que muitos comentaristas/intelectuais confundem a CLT com a Constituição Federal de 1937, escrita por Francisco Campos. A segunda tem, de fato, um trecho copiado da Carta del Lavoro.

BRI: Qual foi o papel e diferença entre as ideologias fundadoras do fascismo e as fundadoras do pensamento de Getúlio?

Em minha pesquisa de doutoramento (disponível aqui) trabalhei com uma longa linha de história intelectual, vindo lá do século XVIII, para tentar entender a luta pelos direitos sociais. Pesquisei a história de positivistas, socialistas, marxistas, anarquistas e católicos. Todas estas correntes foram de grande influência na formação do fascismo.

Ainda maior é o grau de influência destas correntes na redação da Carta del Lavoro, cujo principal autor, Alfredo Rocco, havia estudado com algum afinco o positivismo de Saint-Simon, Augusto Comte e Émile Durkheim. Também leu Marx, Engels e Lênin, como fica patente em suas obras teóricas como A Doutrina Política do fascismo discurso de 1925 depois plasmado em livro.

Para estudar a Carta del Lavoro devemos pensar nela como um ponto de chegada mais do que como um ponto de partida. O que também acontece com outros documentos históricos.

No caso de Getúlio Vargas as influências mais evidentes são a de Saint-Simon (filósofo que Vargas dizia ser seu favorito) e a de Júlio de Castilhos (sua principal referência teórica no Brasil, seu pai, Manoel Vargas, também era castilhista). Também é forte em Vargas, assim como em todo o Partido Republicano Rio-Grandense (PRR, partido fundado por Castilhos), a influência do socialismo corporativista português através das figuras de Oliveira Martins e Antero de Quental.

De fato, quando analisamos a vida política de Vargas, desde jovem estudante de direito até seu sacrifício final, o grau de correspondência com a teoria saint-simoniana é altíssimo.

BRI: Nos anos 80 e 90, a CLT recebeu um ataque muito forte também de setores de uma “Nova Esquerda” que surgiu no Brasil da redemocratização. Em uma entrevista em 1986, Lula chegou a chamar a legislação trabalhista de 1943 de “entulho”. Quais eram as condições dos trabalhadores no Brasil antes do advento da CLT? Como você acredita que esse pensamento adentrou nos círculos dessa “Nova Esquerda”?

Quanto à condição de vida dos trabalhadores antes da CLT posso fazer um breve histórico.

No século XIX os mais importantes grupos positivistas brasileiros defendiam uma abolição radical da escravidão. Radical pois defendia que ela fosse geral, imediata e que fossem ressarcidos os antigos escravos libertados. Principais vítimas do horroroso sistema produtivo montado em nosso país. Entre os abolicionistas estava Júlio de Castilhos, diretamente responsável pela alforria de dezenas de milhares de escravos anos antes da Lei Áurea. Entre os estancieiros castilhistas que patrocinaram a abolição no Rio Grande do Sul estava Manoel Vargas, pai de Getúlio.

Ademais, ainda no século XIX, os positivistas defendiam uma série de leis trabalhistas, também radicais. Chegaram até a enviar para a constituinte de 1890 uma revolucionária legislação trabalhista que se fosse aplicada teria feito do Brasil o primeiro país do mundo com direitos trabalhistas em sua constituição. No mesmo processo os positivistas também defenderam o sufrágio feminino. Foram derrotados pelos liberais em ambas as bandeiras.

Durante a Primeira República, só o Rio Grande do Sul com sua Constituição Estadual escrita pelo Júlio de Castilhos garantiu alguns direitos para os trabalhadores. Em todo o país a situação dos trabalhadores permanecia desastrosa. Raras vozes se levantavam em sua defesa, em geral ligadas a militantes socialistas, anarquistas e/ou positivistas. Um exemplo importante foi a luta do deputado socialista Maurício de Lacerda, responsável pela promulgação de algumas leis trabalhistas, pouco aplicadas e fiscalizadas, ainda na Primeira República. Vale lembrar que o socialista Maurício de Lacerda foi pai do conservador Carlos Lacerda.

A coisa muda muito de figura com a ascensão da Aliança Liberal e de Getúlio Vargas ao poder através da Revolução de 1930. A promulgação de uma enorme série de leis sociais, entre elas a legislação trabalhista – com meios que garantiam a fiscalização e aplicação destas leis, somados à mudança estrutural do funcionamento do Estado brasileiro dividiram a história social do Brasil republicano em antes e depois de 1930.

Já em relação à “nova esquerda” lembro que o Lula, nos anos 80, dizia que a CLT era “o AI-5 do trabalhador”. O PT foi formado como um partido liberal; no antivarguismo e na luta contra a CLT encontravam-se tanto os liberais de extrema esquerda (ligados em geral a 4ª internacional), quanto os liberais do centro esquerda à centro direita (para ficar em um exemplo, Francisco Weffort que participou dos anos iniciais do PT, chegando ao cargo de Secretário Geral).

Essa falsa ideia de que Vargas era fascista era fortíssima neste grupo, como mostram vários dos depoimentos dos militantes do PT daquele período. Também é marcante que o PT tenha votado contra a unicidade sindical na constituinte de 1988. Ademais, noto que o MMDC, agressores transformados em vítimas heroicas na campanha da guerra civil de 1932, foram alçados ao patamar de “heróis da pátria” pela Dilma Roussef.

Reforçado este histórico, minha impressão pessoal é que Lula vem mudando sua concepção em relação à CLT e ao legado Vargas. Não sei bem o que causou esta mudança, mais aparente depois de sua prisão; talvez uma leitura impactante ou o conselho de alguém menos liberal. Certamente contribuiu para este caminho a saída de vários destes grupos liberais de dentro do PT. Tanto os que saíram para o PSDB e afins (como o grupo do Weffort) como os que saíram para fundar partidos liberais de extrema esquerda (como o PSOL).

Mas me parece que o indivíduo Lula avançou mais que o PT. Felizmente as declarações de Lula em relação a estes temas nos últimos anos são mais coerentes com a sua postura de defesa dos trabalhadores. Menos enviesados pela retórica liberal.

BRI: Nos últimos anos, reformas aprovadas no Congresso sob o argumento de “modernizar” as relações trabalhistas geraram, na prática, uma explosão da informalidade e o aumento do desemprego, ao contrário do que se prometia. Você acredita que a CLT atual é moderna? O objetivo dessas reformas era realmente uma modernização das leis trabalhistas?

A CLT foi morta e de morte matada, sem querer fazer catastrofismo. Não sou contra mudanças e tampouco sou contra uma modernização da CLT. Desde que estas mudanças venham para defender ainda mais os trabalhadores. O que ocorreu não foi uma modernização mas uma destruição dos direitos. Se esta “modernização” seguir adiante muito em breve chegaremos a 1888.

Este é mais um dos sistemáticos ataques ao chamado “legado Vargas”. Um histórico de ataques que vem desde, pelo menos, o golpe militar de 64 executado contra o herdeiro direto de Getúlio, mas que passou para a redemocratização através dos governos de Collor e FHC. Os alvos principais são sempre os mesmos; os direitos dos trabalhadores e as empresas estatais.

Me causa espanto que a chamada “reforma trabalhista” não esteja sendo combatida com a veemência necessária. Perdem os trabalhadores e perde o Brasil.

(Colaborou Yan Vaz de Melo)
(Foto: Reprodução)

Por Thiago Manga

Thiago Manga é carioca, jornalista, assessor, já atuou em campanhas eleitorais. Atualmente é Diretor de Redação do Brasil Independente.

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