Voto – Nas décadas de 1950 e 1960, o voto na esquerda – campo que inclui partidos democratas, trabalhistas, socialistas, social democratas, comunistas e verdes – estava associado a eleitores de baixa renda e baixa escolaridade.
Gradualmente, esses partidos passaram a atrair os eleitores de maior nível educacional. Com isso, as décadas de 2000 e 2010 foram marcadas por uma divisão política das elites, com o topo de maior renda votando à direita, e o topo de maior escolaridade optando pela esquerda.
Nesse cenário, o conflito político deixou de ter como eixo principal questões econômicas e distributivas (que são aquelas voltadas a corrigir a desigualdade na distribuição de renda), e o eixo “sociocultural” e identitário ganhou importância.
Como resultado, os sistemas partidários das principais democracias ocidentais deixaram de ter as classes sociais como clivagem mais relevante, substituídas pela divisão entre as elites.
As conclusões são de um novo estudo do economista francês Thomas Piketty, autor de O Capital do Século XXI (2013) e Capital e Ideologia (2019), em coautoria com os pesquisadores Amory Gethin, do Laboratório da Desigualdade Global da Escola de Economia de Paris, e Clara Martínez-Toledano, do Imperial College de Londres.
No estudo, publicado como texto para discussão em maio deste ano, os analistas se debruçaram sobre pesquisas eleitorais de mais de 300 eleições realizadas entre 1948 e 2020. O levantamento abrange 21 economias avançadas ocidentais, incluindo 17 países da Europa, Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia.
Desigualdade crescente e ‘autoritarismo antissistema’
“As desigualdade econômicas cresceram significativamente no mundo ocidental desde os anos 1980, ainda que em velocidades distintas”, observam Gethin, Martínez-Toledano e Piketty, no texto para discussão.
“Diante dessa evolução recente, seria possível esperar um aumento na demanda política por redistribuição [de renda] e pelo retorno de uma política baseada em classe, renda ou riqueza”, afirmam os pesquisadores.
“No entanto, as democracias ocidentais parecem ter migrado para novas formas de conflito baseadas em questões identitárias nas últimas décadas, materializadas na crescente relevância das pautas ambientais e dos movimentos autoritários antissistema”, acrescentam.
Os pesquisadores destacam a agenda de protecionismo econômico, defesa de restrições à imigração e conservadorismo social comum a esses movimentos, que conseguiram canalizar parte das ansiedades sociais geradas pela globalização e pela insegurança econômica.
Segundo eles, a eleição do republicano Donald Trump nos Estados Unidos, o Brexit no Reino Unido e o crescente fortalecimento da líder de extrema direita Marine Le Pen na França são exemplos desse autoritarismo antissistema que ganhou espaço no período recente.
Para entender a emergência do que chamam de “populismo xenofóbico” nas principais democracias ocidentais, os pesquisadores então analisaram um banco de dados sem precedentes de pesquisas eleitorais, que permitiu a eles avaliar a evolução das preferências políticas nesses países, com dados que contém informações dos eleitores por nível de escolaridade, renda, idade, gênero, religião, localização urbana ou rural, raça, entre outras.
Direita mercantil’ e ‘esquerda brâmane’
“O resultado mais marcante que emerge das nossas análises é o que propomos chamar de transição de um ‘sistema partidário baseado em classes’ para um ‘sistema partidário multi-elites'”, relatam os pesquisadores, sobre seus achados.
“Nos anos 1950 e 1960, o voto nos democratas, trabalhistas, socialistas, social democratas e outros partidos de esquerda nas democracias ocidentais era ‘baseado em classe’, no sentido de que era fortemente associado com os eleitores de baixa renda e baixa escolaridade”, explicam Gethin, Martínez-Toledano e Piketty.
Com a gradual associação do voto na esquerda aos mais escolarizados, surge a partir dos anos 2010 uma divergência marcante entre os efeitos da renda (ou capital econômico) e da educação (ou capital humano) sobre as preferências políticas, apontam os autores.
“As elites econômicas continuam a votar na ‘direita’, enquanto as elites intelectuais passam a apoiar a ‘esquerda'”, observam eles, que batizam os dois grupos de “direita mercantil” (“Merchant right”, na expressão em inglês) e “esquerda brâmane” (“Brahmin left”).
Essa nomenclatura, que dá título ao estudo publicado em maio deste ano – Brahmin Left versus Merchant Right: Changing Political Cleavages in 21 Western Democracies, 1948-2020 (Esquerda Brâmane versus Direita Mercantil: Divisões Políticas em Mutação nas Democracias Ocidentais do Século 21, em tradução livre) – tem origem no sistema de castas indiano.
Naquele país, as classes superiores são divididas entre os brâmanes (sacerdotes e intelectuais) e os xátrias e vaixás (guerreiros e comerciantes). Os pesquisadores veem um paralelo entre essa divisão das elites indianas e a nova clivagem das elites nas democracias ocidentais.
Nesse novo cenário, onde a educação passa a ser a um determinante mais relevante do voto do que a renda, para onde vai a preferência política dos menos estudados? Os pesquisadores respondem e não trazem boas notícias para a esquerda.
“Partidos que promovem políticas ‘progressistas’ (verdes e, em menor medida, os partidos de esquerda tradicional) viram seu eleitorado se tornar crescentemente mais restrito aos eleitores de maior nível educacional, enquanto os partidos com visões mais ‘conservadoras’ (anti-imigração e, em menor medida, os partidos de direita tradicional) têm, ao contrário, concentrado uma parcela crescente do eleitorado de baixa escolaridade”, afirmam.
E o Brasil com isso?
Existe paralelo entre o quadro descrito por Gethin, Martínez-Toledano e Piketty para os 21 países de economia avançada analisados e a realidade política brasileira?
A BBC News Brasil perguntou à socióloga Esther Solano, professora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e pesquisadora do conservadorismo brasileiro, e ao sociólogo Celso Rocha de Barros, colunista da Folha de S.Paulo e estudioso das esquerdas.
Solano afirma que, no Brasil, a direita tradicional e historicamente representante das elites, formada pelo PSDB e partidos do Centrão, foi muito atingida nos últimos anos pelo discurso antipartidário e anticorrupção.
Enquanto isso, a nova extrema direita, representada pelo bolsonarismo, conseguiu apelar ao mesmo tempo às elites, com o liberalismo de Paulo Guedes; à classe média, com o “lavajatismo”; e às classes populares, através do ressentimento contra o sistema e do apelo ao eleitorado cristão neopentecostal.
“Há um contingente da população empobrecida, fundamentalmente as classes C e D, que são aquelas que tiveram uma melhora da qualidade de vida em termos de renda e poder aquisitivo, que se afastou das bases petistas, em grande medida devido ao discurso anticorrupção”, afirma a socióloga, citando ainda a burocratização e insulamento do partido após sua chegada ao poder em 2003 como fatores que o afastaram de suas bases populares.
Solano cita ainda a emergência do Psol como uma outra força relevante dentro da esquerda, na sua avaliação, mais ligada às pautas ditas “identitárias” e, por isso, mais identificada a um progressismo intelectualizado de alta renda e de classe média.
“No Brasil, os mais pobres continuam votando principalmente no PT”, observa Solano. “Porque o PT não se deslocou, ele continua representando o eixo da renda e do material, da esperança de uma renda maior no futuro. Então o PT ainda não perdeu essa conexão com os mais pobres e com a questão de classe”, observa a socióloga, que vê falhas na comunicação de temas como machismo, racismo e homofobia, que afetam desproporcionalmente os mais pobres.
‘A importação do argumento de Piketty tem problemas’
“Em 2018, a direita entrou no eleitorado mais pobre que era do PT não por ter lhes oferecido mais políticas sociais, redistribuição de renda etc., mas por oferecer conservadorismo moral e combate à corrupção”, avalia Celso Rocha de Barros.
“Nesses dois anos de governo Bolsonaro, a coisa não parece ter sido bem assim. É verdade, o conservadorismo moral deve ser responsável pela resiliência dos índices de aprovação de Bolsonaro, mas seu pico de popularidade foi no auge do auxílio emergencial, a coisa mais ‘Lulista’ possível”, observa o sociólogo.
“O que parece é que o conservadorismo moral pode dar uma base popular para a direita, mas pode não ser suficiente para, sozinho, ganhar eleições consistentemente, sem ajuda de medidas econômicas mais pró-pobre”, completa.
Rocha de Barros avalia que a importação do argumento de Piketty e coautores para a realidade do Brasil tem problemas.
“Boa parte do argumento se refere à crise dos partidos socialdemocratas europeus, mas aqui aconteceu algo diferente: enquanto isso acontecia na Europa, o PT fez um governo socialdemocrata bastante bem sucedido com políticas sociais bastante robustas”, afirma.
Segundo ele, o PT não foi retirado do poder porque “abandonou os pobres ou se tornou ‘identitarista'”, mas porque, a partir de certo ponto, não conseguiu mais gerar crescimento econômico e também por ter sido pego em escândalos de corrupção.
“Talvez seja mais difícil a pauta econômica perder centralidade em países mais pobres”, avalia o sociólogo. “Mas, por enquanto, tudo isso são hipóteses a serem exploradas, e acho que essa discussão deve se tornar cada vez mais central no Brasil.”
Fonte: CNN
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