O ex-chanceler Ernesto Araújo mobilizou o aparato diplomático do Brasil para garantir fornecimento de cloroquina ao país, mesmo após a Organização Mundial da Saúde ter interrompido testes clínicos com a droga e depois de associações médicas terem alertado para a ineficácia e o risco de efeitos colaterais.
Isso é o que revelam telegramas diplomáticos obtidos pelo jornal Folha de São Paulo e informações de pessoas envolvidas nas negociações. O ex-ministro, que pediu demissão no fim de março, será ouvido na CPI da Covid na próxima quinta (13), para explicar se houve prejuízo na aquisição de insumos e vacinas por causa da política externa de sua gestão.
A corrida do Itamaraty atrás da cloroquina começou pouco depois de o presidente Jair Bolsonaro falar em “possível cura para a doença” em suas redes sociais, em 21 de março do ano passado.
“Hospital Albert Einstein e a possível cura dos pacientes com Covid-19. Agora há pouco os profissionais do hospital Albert Einstein me informaram que iniciaram um protocolo de pesquisa para avaliar a eficácia da cloroquina nos pacientes com Covid-19”, escreveu ele.
Um dia antes, a Prevent Senior e o hospital Albert Einstein haviam anunciado que tinham iniciado estudos com o medicamento. Em declaração durante reunião do G-20, em 26 de março, relatada em telegrama, Bolsonaro apontou para “testes bem-sucedidos, em hospitais brasileiros, com a utilização de hidroxicloroquina no tratamento de pacientes infectados pela Covid-19, com a possibilidade de cooperação sobre a experiência brasileira”.
No mesmo dia, mesmo não existindo nenhum “teste bem-sucedido” em hospitais brasileiros, o Ministério das Relações Exteriores pediu, em telegrama, que os diplomatas tentassem “sensibilizar o governo indiano para a urgência da liberação da exportação dos bens encomendados pelas empresas antes referidas [EMS, Eurofarma, Biolab e Apsen] e outras que se encontrem em igual condição, cujo desabastecimento no Brasil teria impactos muito negativos no sistema nacional de saúde”. Na época, o governo indiano havia restringido a exportação da cloroquina.
Em outra comunicação, no dia 15 de abril, o ministério pede que a embaixada na Índia faça gestões junto ao governo indiano para liberar uma carga de hidroxicloroquina comprada pela empresa Apsen antes de a exportação ser vetada por Déli e para que a venda da droga seja normalizada.
Abril
Durante todo o mês de abril, houve inúmeros pedidos do Itamaraty para obtenção de cloroquina —defendida por Bolsonaro como “cura” para a Covid-19.
Um dos telegramas, por exemplo, afirma que o Itamaraty teria pedido à Organização Pan-Americana de Saúde que entrasse em contato com o governo indiano para conseguir a liberação de um lote de milhões de doses de hidroxicloroquina.
Em outro, datado de 24 de abril, o ministério pede apoio para uma farmacêutica brasileira conseguir importar sulfato de hidroxicloroquina e relata que ela forneceria habitualmente para “FURP [Fundação para o Remédio Popular], Fiocruz, LAQFA [Laboratório Químico-Farmacêutico da Aeronáutica] e Laboratório do Exército”. Na comunicação, o ministério pede à embaixada que sejam feitas gestões junto ao governo indiano para liberar a carga.
Mesmo depois de a Sociedade Brasileira de Infectologia, a Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia e a Associação de Medicina Intensiva Brasileira desaconselharem o uso da cloroquina contra a Covid e apontarem efeitos colaterais graves, em 19 de maio, o Itamaraty continuou acionando o corpo diplomático, em telegramas em junho, para garantir o fornecimento de hidroxicloroquina.
Já o empenho do Itamaraty para garantir vacinas e medicamentos da China foi muito menor do que o dedicado à cloroquina. Até novembro de 2020, o ministério não havia enviado instruções específicas para diplomatas prospectarem potenciais fornecedores de vacinas ou medicamentos na China, segundo pessoas envolvidas em negociações.
A China é o país que mais produz imunizantes contra a Covid e foi alvo de ataques constantes durante a gestão de Ernesto. O país tem cinco vacinas aprovadas pelas autoridades sanitárias locais, entre elas a da gigante Sinopharm —ainda que os produtos chineses tenham eficácia menor do que os da Pfizer e da Moderna, por exemplo.
Das chinesas, o Brasil só usa a Coronavac, da Sinovac, produzida em parceria com o Instituto Butantan, em acordo fechado pelo governador de São Paulo, João Doria. Mais de 80% das doses administradas no Brasil são de Coronavac. Segundo pessoas envolvidas na negociação, houve apenas pedidos vagos de informação sobre os desenvolvimentos na área de vacinas, mas nenhuma orientação ativa para obter imunizantes, ao contrário do que foi feito com a cloroquina.
2021
Só a partir deste ano a embaixada do Brasil na China foi acionada para fazer gestões pela liberação de insumos para a produção de vacinas da AstraZeneca.
Um telegrama de 4 de abril de 2020 relata que o presidente Bolsonaro teria dito, em conversa telefônica com o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, que o Brasil havia tido “resultados animadores” no uso da hidroxicloroquina para tratar pacientes com Covid-19.
No entanto, não houve no Brasil nenhum estudo considerado padrão-ouro (randomizado, duplo-cego e com grupo controle) que demonstrasse eficácia da hidroxicloroquina contra a doença. Só duas semanas após o telefonema de Bolsonaro, a Prevent Senior divulgou um estudo preliminar, que foi considerado falho, incompleto e com indícios de fraude.
O Albert Einstein também conduzia um estudo com um grupo de hospitais sobre o uso da hidroxicloroquina —o resultado, divulgado no fim de julho, aponta que a droga não mostrou efeito favorável na evolução clínica de pacientes adultos hospitalizados com formas leves ou moderadas de Covid-19.
No telefonema ao premiê indiano, relatado no telegrama, Bolsonaro pedia a Modi a liberação de carregamentos de hidroxicloroquina adquiridos por empresas brasileiras, dizendo ser “um apelo humanitário” e afirmando que a cloroquina “poderia salvar muitas vidas no Brasil”.
A reportagem entrou em contato com o Itamaraty por e-mail e telefone em busca de posicionamento do ministério e do ex-ministro Ernesto Araújo sobre a questão. Até a publicação desta reportagem, o Itamaraty não havia respondido.
Fonte: Folha de S. Paulo
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