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Opinião: “O Caso Qintess: a modernidade voltou para o presente”

Caso Qintess – A vitória dos trabalhadores na greve da Qintess comandada pelo sindicato da categoria, o Sindpd, no começo de abril, trouxe de volta uma verdade que os oligopólios tentaram nos fazer esquecer: só a organização traz conquistas para quem vive do salário.

Nos anos 80 e 90, a ascensão do neoliberalismo coincidiu com a emergência da tecnologia da informação como elemento central da economia contemporânea. Os sindicatos, os direitos trabalhistas e a greve foram considerados “velharias” obsoletas, como as antigas televisões de tubo de raio catódico. As mudanças deste conturbado início do século XXI mostraram que nada poderia estar mais distante da realidade.

Há 40 anos, o mundo assistiu atônito enquanto “tudo que era sólido desmanchava no ar”. Na Inglaterra, os sindicatos dos trabalhadores das minas de carvão tiveram seu movimento grevista derrotado pelo governo de Thatcher. As experiências nacional-desenvolvimentistas ruíram junto do chamado “socialismo real”. A socialdemocracia começou a ser desmontada em quase todo mundo, em nome da “responsabilidade individual” que jogava nos ombros dos assalariados o peso da precarização.

Tudo ficou de ponta cabeça. O “neo” do neoliberalismo trouxe de volta uma velharia com cara de nova: o liberalismo do século XIX que, apesar do nome, nada tinha de liberdade. Sua verdadeira face eram as jornadas de 12 horas por dia das antigas fábricas de Manchester e a realidade do salário de fome narrado por Charles Dickens e Victor Hugo. A perseguição e a repressão aos sindicatos era o que havia de oculto sob essa suposta “liberdade”.

Se no centro da economia mundial o “neo” ressuscitou o que havia de mais escabroso no liberalismo, no nosso canto do Terceiro Mundo foi ainda pior. Com sua cara de “modernético”, Collor começou uma implacável perseguição contra os sindicatos, a destruição da precária estrutura de nosso Estado de Bem-Estar Social e, principalmente, os pilares de nosso nacional-desenvolvimentismo.

De certo modo, o objetivo de Collor era nos trazer de volta para a República Velha (1889-1930), quando a “questão social era caso de polícia”, na notória expressão do então presidente Washington Luís (1926-30). A grande greve de 1917 deflagrada em São Paulo contra os abusos daquela época, sobretudo no setor têxtil, foi duramente reprimida pela oligarquia liberal.

No entanto, aquele movimento não foi em vão. Sua primeira conquista foram as legislações trabalhistas dos anos 1920, atendendo as necessidades de algumas categorias.Ao longo daquela década, a consciência nacional se aprofundou, levando ao tenentismo e o levante de julho de 1924 em São Paulo, que tinham a “questão social” como pano de fundo.

O resultado desse processo histórico foi a Revolução de 1930. Com ela, veio o salário-mínimo e a CLT, esteios dos direitos trabalhistas até hoje. Contudo, muito mais importante, foram a estrutura sindical e o Ministério do Trabalho.

Foi por meio da organização sindical que os trabalhadores conquistaram o reajuste de mais de 100% do salário-mínimo na Greve dos 300 mil em 1953. Durante a hiperinflação nos anos 80, foi a estrutura sindical que defendeu a remuneração dos trabalhadores e conquistou aumentos reais. Foi o movimento sindical organizado que derrubou o Decreto-Lei 2.045, imposto pelo FMI em 1983 para limitar os reajustes salariais. Foi a tão difamada estrutura sindical que evitou a entrega das refinarias brasileiras na década de 1990 contra a sanha privatista.

Justamente por ser tão eficaz é que o movimento sindical está na mira dos oligarcas. Nos Estados Unidos, Jeff Bezos procura incansavelmente evitar a sindicalização dos trabalhadores da Amazon. A Alphabet, dona da Google, tornou-se notória por suas práticas agressivas contra a sindicalização em suas instalações.

Os movimentos de sindicalização na área de tecnologia da informação abundam por todo mundo em virtude dos abusos sistemáticos que ocorrem nesse segmento. É famoso o caso do “crunch”, termo usado pelos funcionários para descrever o abuso da hora extra para atender prazos apertados no desenvolvimento dos softwares, como ocorreu na CD Projekt RED não muito tempo atrás.

No Brasil, a chamada “reforma trabalhista” teve exatamente esse sentido. A terceirização irrestrita abriu os caminhos para a pejotização em massa, demolindo os diretos trabalhistas de enormes contingentes de trabalhadores, além de prejudicar suas futuras aposentadorias.

O empreendedorismo, que por si mesmo seria uma virtude ao dar espaço para a inovação e a inciativa, foi distorcido e transformado numa maneira disfarçada de se explorar verdadeiros funcionários ocultos. Os aplicativos como iFood e Uber empregam massas de trabalhadores precarizados dessa forma.

O trabalho de casa, conhecido como “home office”, poderia ser uma grande conquista. Contudo, a confusão proposital de horários de trabalho e descanso, as cobranças, prazos e parâmetros abusivos e a necessidade de se estar disponível o tempo inteiro esvaziaram-no de significado.

Se não bastassem a precarização e os abusos, muitas empresas pura e simplesmente não honram os contratos e acordos coletivos. A maioria das demandas trabalhistas tanto na justiça como no movimento sindical têm por objetivo o mero pagamento do que é devido.

É por isso que a tal “reforma trabalhista” atacou de maneira tão agressiva a estrutura sindical e o direito trabalhista. Na esteira da destruição do país nos governos de Temer e Bolsonaro, faces do “neo”liberalismo hostil a tudo que é humano, foram coerentes ao procurar desmanchar estes esteios das conquistas das lutas sociais no Brasil.

O que a luta dos trabalhadores da tecnologia e suas vitórias recentes mostraram é que o movimento sindical e os direitos trabalhistas são o que há de mais moderno. A velharia vendida como nova do “neo”liberalismo é que suscitou a exploração desmedida dos assalariados da categoria.

Ao conquistar seus direitos, a vitória dos trabalhadores da Qintesss, organizada pelo Sindpd, foi vanguarda de toda uma categoria que começou a despertar, não só no Brasil como em todo mundo. E o significado dessa consciência transcende em muito o segmento da tecnologia da informação, abrindo a possibilidade para reverter décadas de retrocesso para os assalariados em todo o planeta.

Por Arthur Silva, mestrando em Economia Política Mundial pela UFABC, militante trabalhista, editor do portal Disparada e pesquisador do pensamento brasileiro e da história nacional

*Texto publicado originalmente pelo Estadão

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Este texto é opinativo e não reflete, necessariamente, a opinião do site Brasil Independente.

Por Redação

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