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Conflito na Ucrânia – I. A invasão da Rússia na Ucrânia foi, sem dúvida, uma violação dos princípios do Direito Internacional Público (DIP) e da Carta das Nações Unidas, a qual criou, no plano mundial, um sistema de segurança coletiva, que só autoriza intervenções em outros países em caso excepcionais, após aprovação do Conselho de Segurança da ONU.
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II. Muito embora os EUA sistematicamente violem esse sistema (exemplos: Iugoslávia, Iraque, Afeganistão, Líbia, Síria etc.), isso não justifica essa nova agressão.
III. É preciso, considerar, nesse contexto, que o sistema de segurança coletiva protege, em especial, países que não têm grande poder militar, como o Brasil. Portanto, é do interesse nacional do país defendê-lo e preservá-lo.
IV. Assim sendo, a condenação da invasão é correta e necessária. E é o que o Brasil tem feito reiteradas vezes.
V. Ao contrário do que dizem os mal-informados, a posição do Brasil relativamente à guerra na Ucrânia tem sido basicamente uma só: condenar a intervenção, mas recusar-se a apoiar as sanções e quaisquer esforços bélicos.
VI. Na primeira votação sobre o tema, realizada em 25/02/2022, no Conselho de Segurança da ONU, o Brasil votou contra a intervenção. Esse voto se repetiu em pelo menos duas grandes votações na Assembleia-Geral, realizadas em 2 de março de 2022 e 12 de outubro do mesmo ano.
VII. Houve ocasiões, no entanto, em que o Brasil se absteve. Por exemplo, na Resolução da Assembleia-Geral que pediu a suspensão da Rússia do Conselho de Direitos Humanos da ONU e na Resolução que demandava que somente a Rússia fosse responsabilizada por violações de direitos humanos.
VIII. Agora, em 2023, o Brasil voltou a condenar formalmente a invasão, em nova votação na Assembleia-Geral da ONU. Saliente-se que, nessa última votação, a diplomacia brasileira conseguiu introduzir vários parágrafos em prol da busca da paz na Resolução aprovada. Foram os seguintes: 1. Salienta a necessidade de alcançar uma paz abrangente, justa e duradoura na Ucrânia o mais rapidamente possível, em conformidade com os princípios da Carta das Nações Unidas;2. Saúda e apoia fortemente os esforços do Secretário-Geral e dos Estados Membros para promover uma paz abrangente, justa e duradoura na Ucrânia, em conformidade com a Carta, incluindo os princípios de igualdade soberana e integridade territorial dos Estados; 3. Exorta os Estados-membros e as organizações internacionais a redobrar o seu apoio aos esforços diplomáticos destinados a alcançar uma paz abrangente, justa e duradoura na Ucrânia, em conformidade com a Carta;
IX. Entretanto, a condenação da invasão não deve impedir, no nosso entendimento, a análise objetiva e racional das raízes históricas e estruturais do conflito, totalmente ignoradas pela mídia ocidental e brasileira, no quadro de uma russofobia avassaladora, que criminaliza até mesmo o grande Dostoievsky.
X. Entender plenamente o conflito não significa justificar a agressão. Significa compreender as razões e motivações das partes em conflito, primeiro e fundamental passo para a busca consequente da paz.
XI. Pois bem, o presente conflito entre Rússia e Ucrânia não pode ser entendido sem se levar em consideração dois grandes fatores históricos: a expansão injustificada da Otan em direção ao território da Rússia e a instalação, via golpe, na Ucrânia, de um regime político francamente hostil a Moscou, no qual grupos neonazistas têm considerável influência.
XII. A Otan foi criada em 1949, pelo Tratado de Washington, já no contexto do início da Guerra Fria. Seu grande objetivo era o de criar um pacto militar e político que fizesse frente à influência da URSS na Europa. Sua existência se justificava no quadro de um conflito geoestratégico que opunha os interesses dos EUA e seus aliados da Europa Ocidental aos interesses da URSS e seus aliados da Europa Oriental, corporificados, por seu turno, no Pacto de Varsóvia.
XIII. Finda a Guerra Fria, após o colapso da URSS, o Pacto de Varsóvia foi extinto, em 1991. Não obstante, a Otan não só foi mantida como consideravelmente expandida, apesar das promessas em contrário dos EUA. Por quê?
XIV. Há duas razões principais para tanto. A primeira tange ao desejo dos EUA de manter o controle geoestratégico e geopolítico da Europa. A extinção da Otan teria propiciado a criação um pacto militar próprio e independente da Europa, sem a participação de EUA. Isso contrariava a estratégia de Washington de manter o continente europeu subordinado aos seus interesses. Tal estratégia explica porque os EUA nunca exigiram grandes contrapartidas econômicas de seus aliados europeus para manter a Otan, um organismo bastante dispendioso.
XV. A segunda razão diz respeito ao fato de que os EUA e alguns de seus aliados, principalmente os do Leste europeu, nunca deixaram de considerar a Rússia como uma ameaça potencial à sua hegemonia naquela região. Considere-se que Yeltsin e Putin, no início de seu primeiro governo, chegaram a solicitar aos EUA que a Rússia fosse incluída num organismo de “segurança paneuropeu”, ou mesmo à Otan. Na década de 90 e no início deste século, a Rússia não se via como uma adversária da Europa. Ao contrário, desejava ser incluída nela. Se via essencialmente como um país europeísta. Mesmo assim, os EUA e alguns aliados rejeitaram tais pretensões da Rússia e mantiveram uma estratégia de exclusão daquele país e de contínua expansão da Otan para o Leste. Tal estratégia pode ser resumida pela seguinte frase: “manter os americanos dentro; manter os russos fora e manter os alemães subordinados.”
XVI. Desse modo, a expansão da Otan para o Leste foi realizada de forma sustentada, apesar das promessas em contrário feitas por James Baker a Gorbatchev (“nenhuma polegada para o Leste”). Em 1999, Polônia, Hungria e República Tcheca foram incorporadas à Otan, apesar dos protestos russos. Numa grande segunda onda, concluída em 2004, Letônia, Estônia, Lituânia, Eslováquia, Eslovênia, Bulgária e Romênia também foram incorporadas, em meio a muitos protestos da Rússia. Em 2009, foi a vez da Albânia e da Croácia. Em 2020, Montenegro e Macedônia do Norte também foram incorporadas à Otan. De 16 membros, a Otan passou a contar com 30 membros.
XVII. Na conferência da Otan em Bucareste, realizada em 2008, a Rússia esperava que organismo renunciasse a se expandir para a Ucrânia e para a Georgia. Tal não aconteceu, o que levou Putin a se retirar, furioso, da reunião. Na ocasião, Putin declarou que se a Ucrânia entrasse para a Otan, ela o faria “sem a Crimeia e sem o Donbas”. Vejam bem, Putin antecipou o que a Rússia faria há 14 anos.
XVIII. A eventual incorporação da Ucrânia à Otan poderia colocar tropas ou uma base dessa organização a apenas cerca de 500 quilômetros de Moscou.
XIX. Dessa posição, um míssil hipersônico de alcance intermediário, que pode ser lançado de plataformas móveis, poderia atingir a capital da Rússia em apenas 5 minutos, gerando um tempo de resposta defensiva extremamente curto. Considere-se que os EUA se retiraram do tratado com o Rússia, que regulava esse tipo de mísseis, na era Trump.
XX. Agora, imaginem se fosse o contrário. Imaginem um cenário no qual a Rússia tivesse, por exemplo, incorporado ou tentado incorporar o Canadá (membro da Otan) na OSTC, criando a possibilidade de inserir tropas ou mísseis no sul de Québec, a apenas cerca de 500 quilômetros de Nova Iorque. Será que os EUA assistiriam a tudo passivamente? Evidentemente que não. Teriam reagido com extrema agressividade, como fizeram na crise dos mísseis de Cuba, no início da década de 1960, que levou o mundo ao borde de uma guerra nuclear.
XXI. Em comparação, a reação de Putin era (não é mais, evidentemente) bastante razoável, embora firme. Queria que os EUA firmassem um tratado de não agressão com a Rússia e que a Ucrânia não entrasse na Otan. Era, até este ano, uma aposta na paz e na negociação. Não obstante, Biden e Blinken recusaram.
XXII. Saliente-se que, com a ascensão de um novo regime na Ucrânia, no qual grupos neonazistas têm considerável influência, eclodiu uma guerra civil na região do Donbas, de maioria russófona. Tal guerra civil já havia matado mais de 14 mil pessoas, sendo cerca de 10 mil civis, a maioria russos, antes do surgimento do atual conflito armado.
XXIII. A colocação, em 2021, de mísseis e tropas da Otan na Romênia e na Bulgária, a negativa dos EUA em negociar um pacto de não-agressão e a neutralidade da Ucrânia, a ameaça do regime Kiev de se retirar dos Memorandos de Budapeste (que asseguram a desnuclearização do território ucraniano) e o recrudescimento dos bombardeios contra o Donbas foram as gotas d`água para uma Rússia cansada de promessas não cumpridas e historicamente traumatizada por episódios de quase extermínio.
XXIV. Tal contextualização geopolítica do atual conflito não é apanágio da esquerda ou de setores da esquerda. Como bem advertiram muitos analistas e políticos conservadores do EUA, como Kissinger, MacNamara, George Kennan, John Matlock etc. etc., a injustificada expansão da Otan, combinada com a guerra civil ocasionada pela “revolução laranja”, a qual rompeu com o delicado equilíbrio político interno na Ucrânia, teria sido considerada uma “questão existencial” por qualquer governo russo, não apenas pelo de Putin.
XXV. William Burns, atual diretor da CIA e antigo embaixador dos EUA na Rússia, assinalou, em memorando à secretária de Estado, Condoleezza Rice, datado de 2008, que: “a entrada da Ucrânia na Otan é a mais brilhante de todas as luzes vermelhas para a elite russa (não apenas Putin). Em mais de dois anos e meio de conversas com os principais atores russos, desde os funcionários mais graduados do Kremlin até os críticos liberais mais perspicazes de Putin, ainda não encontrei ninguém que veja a Ucrânia na Otan como algo aquém de um desafio direto à existência da Rússia”.
XXVI. William Perry, secretário de Defesa de Clinton chegou a pensar em renúncia, quando seu chefe decidiu fazer uma primeira expansão da Otan. Até Biden, em 1997, reconheceu que tal expansão geraria reações hostis na Rússia.
XXVII. Portanto, não há como negar. A guerra não teria ocorrido se os EUA e aliados não tivessem expandido injustificadamente a OTAN em direção às fronteiras da Rússia, não tivessem apoiado um regime ucraniano francamente hostil a Moscou e, sobretudo, se não tivessem recusado, reiteradamente, a estabelecer um pacto de não agressão com a Rússia e assegurado a neutralidade do território ucraniano. Assim, quando Lula afirma que não é apenas a Rússia a culpada pelo conflito, ele está assentado em fortes razões históricas.
XXVIII. Mas o importante, agora, com o “leite já derramado”, é lutar por uma paz urgente, já que o conflito está afetando toda economia mundial.
XXIX. De fato, o conflito e as sanções a ele associadas estão ocasionando, como se sabe, um custo econômico altíssimo, que se reflete na alta desmesurada dos preços de energia e de alimentos, por exemplo. E são os pobres do mundo que estão pagando o custo mais alto, na forma de fome e carestia.
XXX. Uma pesquisa recente publicada pela Nature Energy afirma que até 140 milhões de pessoas podem ser empurradas para a pobreza extrema pelo aumento dos preços da energia que ocorreu no ano passado. Os altos preços de energia não apenas impactam diretamente as contas de luz, mas também pressionam para cima os preços ao longo de todas as cadeias de abastecimento e, consequentemente, em itens de consumo, incluindo alimentos. Essa inflação generalizada inevitavelmente prejudica os países em desenvolvimento muito mais do que o Ocidente.
XXXI. Mesmo em Washington, há grande preocupação com a duração e o possível alargamento geográfico do conflito, o qual poderá evoluir facilmente para um confronto direto entre a Otan e a Rússia, com consequências extremamente perigosas para todos.
XXXII. Quanto mais dure o conflito na Ucrânia, maiores as probabilidades de uma nova guerra mundial, que poderia, no limite, ser uma guerra nuclearizada.
XXXIII. Apesar disso, a probabilidade atual da assinatura de tratado de paz é muito pequena, uma vez que as posições negociadoras das Partes são muito distantes.
XXXIV. O mesmo, porém, não pode ser dito de um armistício. Trata-se de objetivo que pode ser alcançado com mais facilidade e que poderia pavimentar, a posteriori, uma negociação de paz.
XXXV. Além do Brasil, a China já está se mexendo para alcançá-lo. Muitos países da Europa, embora não o reconheçam publicamente, também gostariam que as hostilidades cessassem logo. O próprio presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, declarou que aceita discutir um acordo de paz com Moscou, envolvendo a China, o Brasil e países da América Latina e da África, além da Índia. O Kremlin também vê com simpatia a proposta, como ficou evidente na recente visita de Lavrov ao Brasil.
XXXVI. A dificuldade maior seria a retirada das tropas russas da Ucrânia, inclusive da Criméia, exigência do governo de Kiev para negociar. Essa exigência não é realista, já que mais de 80% da população daquela península é de russos. Contudo, tal posição poderia ser abrandada nas negociações de um armistício. Num armistício, as Partes podem manter suas posições. Apenas concordariam com o fim das hostilidades.
XXXVII. Dizer que um cessar-fogo não deveria ser realizado agora porque favoreceria a Rússia, que atualmente controla cerca de 20% do território da Ucrânia, é um disparate.
XXXVIII. Guerras só acabam de duas maneiras: com a vitória militar convincente de uma das Partes ou via negociação.
XXXIX. Ora, o primeiro cenário está descartado. Há um claro impasse militar na Ucrânia e nenhum dos lados está em condições de impor uma derrota militar ao outro, a não ser que se aposte numa grande e irresponsável escalada bélica. Resta, assim, somente a negociação como única via para a paz.
XL. Entretanto, um obstáculo para a paz está nos EUA e alguns aliados, que explicitamente desejam enfraquecer a Rússia e derrotá-la, e fazem grandes esforços para armar cada vez mais os exércitos ucranianos. Insistem em “punir” Putin. Lula tem razão quando critica essa postura belicista e intransigente. Não se trata de “defender Putin”, trata-se de ser realista e admitir que a busca da paz é incompatível com essa postura, a qual só agravará o conflito.
XLI. Nada está garantido. Mas, graças, em boa medida, ao Brasil e à indiscutível liderança internacional de Lula, o mundo está um tantinho mais próximo da paz.
XLII. Nossas posições equilibradas podem não agradar aos EUA e alguns aliados europeus, mas estão em linha com o que pensa a maior parte dos países do mundo, os quais desejam um cessar-fogo imediato e o fim das hostilidades.
XLIII. A paz será sempre o lado certo da História.
Por Marcelo Zero
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