Liberais com Haddad – Sinceramente, não fiquei nada surpreendido com a prioridade do governo em aprovar um novo arcabouço fiscal que pretende reduzir o percentual da dívida pública, cortar despesas e gerar condições para superávits primários puxados por um crescimento baseado na atração de investimento externo. Sou cético ao potencial de sucesso da proposta e profundamente crítico quanto aos seus fundamentos e consequências, mas assim que Haddad foi anunciado como ministro eu saberia que estas seriam as prioridades.
Brizola Neto: “Os ventos da reindustrialização do Brasil”
Eu achava graça quando até comentaristas não tão ingênuos diziam que Haddad e Tebet não dariam “match” pois o primeiro seria de esquerda e, por supuesto, “estatista”. É um jeito de se apegar a rótulos ideológicos esquemáticos e pura pertença de grupo (ele é do PT!) em vez de prestar atenção no que as pessoas pensam e defendem, pois Haddad pode ser acusado de tudo, menos de não ser coerente em suas convicções.
E quais são elas? Um estilo de liberalismo de centro-esquerda que tem profunda aversão da tradição nacional-desenvolvimentista e populista brasileira bem como à história das experiências do chamado “socialismo real”. Sua tese de mestrado — que os bolsonaristas burros usavam para provar que ele era perigoso pois tinha a URSS como objeto — compartilhava a visão de Wittfogel, um historiador conhecido por formular a hipótese de que o socialismo real nada mais foi do que um modo “asiático” e despótico de levar sociedade agrárias e camponesas a um tipo específico de acumulação de capital.
Mas esta crítica não implicava simpatia por Trotsky ou coisa do tipo: para Haddad, essas tradições críticas seriam apenas variações do mesmo núcleo autoritário de pensamento cristalizado na Revolução de Outubro. Haddad partilha do espírito de uma iniciativa pretérita de alguns intelectuais da USP, que criaram uma revista chamada, de modo revelador, “Fevereiro”, dentre os quais o Ruy Fausto.
Aproveitando a referência, utilizo o exemplo do falecido intelectual uspiano para esclarecer melhor as raízes de um certo tipo de tradição tipicamente paulista: exeges de Capital e Marx, vistos como clássicos, acompanhadas de uma política mais semelhante a weberianismo do que a marxismo. Essa tradição implica um rechaço aos temas clássicos da esquerda brasileira dos anos 50/60 – desenvolvimento puxado pelo Estado em um estilo de política envolvendo mobilização de massas urbanas mais do que criação e participação em instituições jurídicas e burocráticas que definem nossas atuais democracias ocidentais. A “modernidade” envolve construir as instituições liberais — e a falta de dinamismo, iniciativa e competência da iniciativa privada brasileira, muito dependente do Estado segundo essa narrativa, seria um sintoma dessa ausência — na economia e política brasileira.
O ex-funcionário do Marcos Lisboa, portanto, tem muito mais proximidades com os pensadores do Insper (não foi casual sua passagem por lá) do que até com nomes do novo-desenvolvimentismo da FGV ao estilo Bresser-Pereira, para nem falar dos economistas heterodoxos de esquerda. Aliás, Bresser-Pereira e até mesmo José Serra são exemplos de nomes que passaram pelo governo FHC mas que mantêm, ainda, algum traço de continuidade, mesmo que sutil e tênue, com o pensamento cepalino que lhes marcou na juventude. Provavelmente seriam ministros da Fazenda muito mais interessados na reindustrialização do país que Haddad, que já declarou em coluna na Folha de SP que nem liga muito para isso.
Duvidam do que eu falo? Todo o diagnóstico sobre a crise do país feita por Haddad, muito antes de assumir a Fazenda, se baseia nas grandes balizas da “Ponte para o Futuro”, um documento muito mais citado do que lido: a crise se originou de excesso de despesas estatais e de orçamentos não equilibrados, é necessário um novo arranjo fiscal sustentável a fim de evitar a trajetória explosiva da dívida pública e garantir segurança aos investidores privados, carro-chave da estratégia do crescimento. Recomendo que leiam o documento e constatem como é contraditório o discurso de gente de esquerda que xingava o governo Temer mas aplaude agora o Lula III.
Escrevo este texto porque fico meio espantado tanto com liberais surpresos positivamente com o Haddad quanto com gente na esquerda super decepcionada. É preciso fugir dos esteréotipos e realmente escutar o que falam e pensam os atores políticos. No caso do Haddad é ainda mais irritante essa tendência, pois o que não faltam são vídeos de discussões amigáveis dele com Marcos Lisboa, vários textos escritos com posições claras ou mesmo seu histórico como prefeito, na qual era Samuel Pessoa era mais ouvido do que qualquer economista da esquerda brasileira.
Por Diogo Fagundes
*Publicado originalmente pelo Portal Disparada
————–
Este texto é opinativo e não reflete, necessariamente, a opinião do site Brasil Independente.
(Foto: Reprodução)