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Trabalhismo e Vargas: Entrevista exclusiva com autor de ‘1932: A história invertida’

A história invertida – Para o cidadão paulistano comum isso normalmente passa despercebido, mas os olhos mais atentos percebem como toda a simbologia de São Paulo destoa da do resto do Brasil. No resto do país, as pequenas e grandes cidades normalmente tem referências à figuras históricas do trabalhismo e dos grandes presidentes da Segunda República.

Isto ocorre não só em nomes de avenidas, como a Av. Getúlio Vargas, presente em muitas cidades do interior e capitais, como uma enorme quantidade de bustos do ex-presidente que encontramos em praças, canteiros, etc.

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Com raras exceções, como a do antigo Elevado Costa e Silva, que através do programa Ruas de Memória, passou à ser chamado Elevado João Goulart, ou as poucas homenagens ao General Miguel Costa, São Paulo essencialmente faz referências à Contrarrevolução Constitucionalista de 1932.

A (Contra) Revolução de 32 é um assunto básico dos currículos escolares de São Paulo, sempre apresentado através da construção historiográfica de que foi uma reação à tirania de Getúlio Vargas e à Revolução de 30, que destituiu a República do Café com Leite, que sustentava o poder político de São Paulo.

Além disso, é impossível andar pela capital do Estado sem esbarrar em nenhuma referência ao conflito, sempre num contexto de comemoração de uma suposta “vitória” contra a ditadura com a constitucionalização do país que ocorreu logo em seguida.

Toda a história desse período é dada como inquestionável e, bem ou mal, sustenta uma parte da “identidade paulistana” perante o resto país até hoje, sendo algo celebrado até mesmo por grupos neonazistas e separatistas.

Apesar disso, sempre houve resistência à essa visão do período e eventualmente surgem novos fatos ou até mesmo uma correção dos fatos apresentados anteriormente. Um dos intelectuais que trabalham esse tema dessa forma se chama Francisco Quartim de Moraes, historiador com doutorado em História pela USP e autor da obra “1932 A História Invertida”. Confira abaixo uma entrevista exclusiva com Quartim, em meio ao aniversário de 69 anos da morte de Vargas.

Redação – Quartim, em que momento você decidiu que deveria estudar esse período da história de São Paulo?

No processo de elaboração do meu projeto de mestrado. Eu estava em dúvida entre vários temas, mas depois de ler o livro de bolso da Profa. Maria Helena Capelato O movimento de 1932. A causa paulista, decidi que ia estudar o levante paulista. Apesar do tamanho limitado do livro acho que ainda é uma das melhores obras sobre o assunto. Me impressionou, desde a primeira leitura, a complexidade do tema. Também tinha a sensação de que a guerra paulista era menos estudada que outros temas que me interessavam, como a ditadura de 1964.

Redação – Em seu livro, como é evidente até mesmo no título, você ressalta que a história da Revolução Constitucionalista é uma construção de uma narrativa com diversos furos com até mesmo uma inversão de fatos da história. Na sua visão, quais são os principais pontos que podemos apontar?

A inversão mais recorrente diz que Vargas só promulgou a constituinte depois do 09 de julho, o que tornaria a constituição de 1934 em uma vitória do movimento paulista. Absolutamente falso, a constituinte já tinha passado por extenso processo de debate que resultou em lei eleitoral avançadíssima para a época. Com sufrágio feminino, justiça eleitoral, voto secreto e os esquecidos, mas não menos importantes, representantes classistas. Também é anterior ao levante de julho a marcação da data da constituinte e a elaboração da estrutura da constituinte de 1933-34. Ela não aconteceu por causa da guerra civil, pelo contrário, a constituinte saiu apesar da guerra promovida por São Paulo.

Outra inversão recorrente é a ideia de que o movimento paulista foi vitorioso pois Vargas nomeou para São Paulo um interventor “paulista e civil”. Essa campanha xenofóbica do “paulista e civil” começou por causa da interventoria de João Alberto, que era militar, socialista e pernambucano. Mas antes do 09 de julho o Governo Provisório nomeou três interventores paulistas e civis; Laudo de Camargo, Plinio Barreto (que não assumiu frente a pressão política feita por seus opositores) e Pedro de Toledo. Este último era tão próximo da oligarquia paulista que seguiu como governador de São Paulo durante a guerra civil. Para tornar ainda mais absurda esta inversão, depois de derrotada a revolta paulista, Vargas nomeou o general Valdomiro Lima como interventor em São Paulo. O general, que não era paulista, derrotou São Paulo “sem dar um tiro” na “batalha que nunca aconteceu” em Itararé.

Vale frisar que estas inversões me espantam pois são feitas por especialistas no tema. Gente que pesquisou a fundo o movimento, mas que não consegue acertar a ordem básica dos fatos. Não é um erro de digitação ou um comentário de alguém que não conhece o assunto. É uma inversão sistemática cuja recorrência serve para justificar a guerra civil fratricida como um movimento democrático vitorioso.

Existem outras inversões mais únicas também. Por exemplo, Paulo Duarte, um dos primeiros professores brasileiros do Dep. de História da USP, escreveu um livro sobre o levante de 1932 com o nome de Palmares pelo Avesso. Para ele era natural que os bandeirantes brancos (na cabeça dele) destruíssem o quilombo dos palmares. A inversão absurda seria os “quilombolas negros” invadirem a “branca” São Paulo, por isto o título racista de seu livro que atrelava as tropas do Governo Provisório, vindos de todo território brasileiro, aos negros resistentes do quilombo de palmares.

Redação – Você também diz em diversas entrevistas que esse momento está envolto em uma conjuntura muito mais complexa, que envolve a história do Brasil e até mesmo de personagens de fora dele. Como estudioso do tema, você consegue imaginar os motivos do porquê construíram as inconsistências e falsificações da história?

Essa falsificação foi vitoriosa pois foi amplamente promovida pela mídia paulista. Desde o dia que seguiu a derrota militar de São Paulo os jornais que haviam patrocinado o movimento (notadamente o Estado de São Paulo, mas também outros diários menores), promoveram uma intensa campanha de transformação da derrota militar em vitória política.

Para ficar em um exemplo: Em 3 de outubro de 1932, dia da derrota paulista, O Estado de São Paulo em seu editorial apontava os rumos:

“a campanha que São Paulo empreendeu será, talvez, a de maior ressonância na história política do Brasil. (…). Dela datará um período novo da vida nacional. (…) São Paulo não deve desanimar, o gigantesco esforço que fez não foi estéril. O que se encerrou ontem foi um inesperado e melancólico desfalecimento de algumas tropas, não foi a luta pela redenção do Brasil”.

O “inesperado” e “melancólico” “desfalecimento de algumas tropas” – leia-se milhares e milhares de brasileiros, mortos nesta desnecessária guerra civil- eram pouca coisa perto da “luta pela redenção do Brasil”.

O slogan do “perdemos mas vencemos” ganhou tanta força que, mais de 90 anos depois dos fatos, ainda ilude uma série de pesquisadores do movimento. Para justificar este slogan inverte-se a ordem dos fatos tentando achar alguma conquista para o movimento paulista derrotado.

Redação – Diversos meios de comunicação da grande mídia ou até mesmo institucionais estão cada vez mais publicando reportagens expondo o período com um inédito teor de crítica. Como você explica esse fenômeno?

Em parte, se deve ao distanciamento temporal do movimento. Agora que a maior parte dos seus promotores já não opina mais sobre a história do Brasil foi possível uma revisão da “mitologia” em torno do tema. Outra prova da importância do distanciamento é que, salvo exceções como o bom livro da Capelato, o início deste movimento crítico em relação ao levante de 32 pode ser relacionado a figura de uma historiadora norte-americana. O livro, agora traduzido para o português, A Cor da Modernidade. A Branquitude e a Formação da Identidade Paulista, e os artigos escritos pela autora, Barbara Weistein (profa. de história na Universidade de Nova York), foram um importante passo para a criação de uma linha de historiadores críticos ao movimento de 1932, na qual eu me incluo. Talvez seja justamente esse distanciamento que deixou tão evidente para Weistein as contradições da memória da guerra paulista.

Na minha experiência pessoal, tanto a editora Anita Garibaldi quanto a assessoria de imprensa da FFLCH foram fundamentais na divulgação do meu trabalho.

Redação – Por fim, você acredita que estamos caminhando em direção à uma pacificação da imagem de São Paulo como polo de resistência à uma suposta tirania de Getúlio e seus herdeiros?

Pacificação não pois, como você mesmo notou em pergunta anterior, o caráter ideológico da memória de 1932 é extremamente ligado à direita brasileira. Enquanto houver direita no Brasil haverá a defesa da memória de 1932 como uma experiência importante para o nosso país. A defesa do movimento paulista não é um monopólio da direita já que vários autores de centro-esquerda ou mesmo, de esquerda, tem opiniões positivas do movimento. Mas dentro da direita é disseminado o ódio ao Getúlio Vargas e a defesa de São Paulo como o “Estado que resistiu a tirania”. Acho que cada um tem o direito de pensar o que quiser sobre o movimento de 1932, como historiador o que não aceito é a inversão das ordens dos fatos e os erros crassos cometidos repetidas vezes. Só que sem estes erros fica bem mais difícil defender o suposto caráter democrático e constitucional da guerra que começou em 09 de julho de 1932.

(Colaborou Yan Vaz de Melo)
(Foto: Arquivo Pessoal)

Por Thiago Manga

Thiago Manga é carioca, jornalista, assessor, já atuou em campanhas eleitorais. Atualmente é Diretor de Redação do Brasil Independente.

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