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134 anos da Abolição: “A bala perdida sempre encontra um corpo negro”; leia entrevista

134 anos da Abolição – Trabalhadora, estudante, ativista, mãe, mulher, humana. Neudes Carvalho é como muitas mulheres negras que lutam por espaço, respeito e dignidade por todo o Brasil.

Presidenta do Movimento Negro do PDT de São Paulo, ela concedeu uma entrevista exclusiva ao Brasil Independente no dia em que se completam 134 anos da Lei Áurea, a Abolição da Escravatura.

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Sem papas na língua, Neudes Carvalho falou sobre a Abolição, sobre as estruturas patriarcais e raciais que formaram a sociedade brasileira e sobre o Brasil atual.

“É a população negra que mais sofre com a pobreza e com a explosão da letalidade policial. É sempre a população negra que está na ponta. A bala perdida sempre encontra um corpo negro. Isso tem que parar.”

Confira a entrevista na íntegra abaixo:

Brasil Independente: Hoje se completam 134 anos da Abolição da Escravatura. O que mudou de lá pra cá?

Neudes Carvalho: A Lei Áurea, assinada em 13 de maio de 1888, considerou livres aproximadamente 700 mil escravos. Atualmente, nós, os negros, somos 54% da população do país, mas as desigualdades continuam. O Brasil foi o último país do continente americano a abolir a escravidão, e o negro liberto não recebeu nenhum tipo de auxílio do governo para que pudesse sobreviver . Essa data, 13 de Maio não traduz o real contexto da história. O fim da escravidão não foi pautado pelo respeito à cidadania negra. Entre a população carcerária, os negros somam 66,7% dos presos no país. Pesquisas, bibliografias e as estatísticas comprovam que existem condições que levam os negros a serem mais presos do que os não negros. As prisões dos negros acontecem em razão das condições sociais, não apenas das condições de pobreza, mas das dificuldades de acesso aos direitos e a vivência em territórios de vulnerabilidade, que fazem com que essas pessoas sejam mais cooptadas pelas organizações criminosas e o mundo do crime. Há um tratamento diferenciado no sistema de justiça. Os réus negros têm muito menos condições que os réus brancos. a luta contra o racismo é constante, mas parece estar regredindo. o resquício da escravidão, as desigualdades raciais que marcam a sociedade brasileira são expressão do racismo. Racismo este que não se inicia no 14 de maio de 1888 e nem com a chegada das teorias racialistas no Brasil, sobretudo depois da década de 1870. A distância entre as pessoas negras e a imagem do cidadão brasileiro tem sido construída ao longo desses 200 anos de Brasil independente.

É comum pensarmos que todo mundo chegou como escravo ao 13 de maio porque temos profunda dificuldade em reconhecer homens e mulheres negras como sujeitos de direitos e cidadania. A promessa da liberdade, da igualdade e da cidadania formal foi afirmada e reafirmada em todas as Constituições Brasileiras, desde a abolição da escravatura. Porém, o cumprimento de tudo isso está longe de ser algo palpável na realidade cotidiana. Os dados de mortes violentas praticadas por agentes do Estado qualificam um cenário de genocídio. A indiferença perante tamanha gravidade não permite dizer que o Brasil seja uma sociedade antirracista de fato, como muitos ainda insistem em dizer. Acredito que esse cenário de diferenças sociais entre negros e brancos pode ser transformado com uma maior participação negra na política. Estamos nos preparando para influenciar no pleito eleitoral. Porque a gente sabe que, se não fizermos a disputa de poder, se nós não ocuparmos os espaços de tomada de decisão na sociedade, nós não vamos mudar esse cenário. É essencial mudar e virar essa triste página da história do país. O lado mais triste dessa história, quem arca com ele é a população negra. É a população negra que mais sofre com a pobreza e com a explosão da letalidade policial. É sempre a população negra que está na ponta. A bala perdida sempre encontra um corpo negro. Isso tem que parar.

BRI: Como você mesma disse, o Brasil foi o último país a abolir a escravidão…comente esse fato e a frase: “a carne preta ainda é a carne mais barata do mercado”?

N.C: Acredito que devido às consequências da exclusão, bem como por criação de estereótipos durante os anos de 1900. Historicamente gerou-se um estigma social que colaborou com a permanência do racismo até os dias atuais. É válido apontar o descaso histórico do Estado com relação às minorias. Nesse contexto no Brasil foram adotadas medidas de equidade, como cotas raciais, somente nos anos 2000, enquanto os Estados Unidos, famoso por sua segregação racial, propuseram a inclusão de negros às garantias democráticas na década de 60. A persistência do preconceito racial pode também ser entendido como fruto do não seguimento do princípio da Igualdade. No Brasil, o racismo persiste em virtude de raízes históricas. Para mudar essa realidade de intolerância, o governo deve manter cotas em universidades, as escolas precisam ministrar aulas e palestras acerca da cultura africana e a mídia, por meio de novelas, filmes, deve desenvolver ficção engajada, alertando a importância da inserção do negro na sociedade, bem como demonstrar as causas e consequências da exclusão social que ocasionam em injúrias raciais e no próprio racismo. Talvez assim o racismo, no cenário nacional, seja amenizado e a música “A Carne”, cantada por Elza Soares, seja apenas um relato do passado preconceituoso e excludente do Brasil.

BRI: O processo abolicionista no Brasil envolveu libertação de milhares de negros sem que tivessem direito à terra, educação, trabalho, nada. O que fez com que muitos deles continuassem reféns dos ‘antigos’ senhores…Quais as consequências disso para o Brasil atual?

N.C.: Basta analisarmos os casos de trabalhos análogos á escravidão em pleno 2022. O Brasil lidera esses índices. Não são casos isolados ou coincidências: é herança do passado escravocrata. Se olharmos o acesso e as oportunidades em marcadores sociais estruturais como educação, saúde, trabalho, constatamos facilmente a exclusão e falta de direitos. Tudo isso é herança desse passado sangrento escravocrata.

BRI: Como é para uma mulher negra viver no Brasil de 2022?

N.C.: Sou uma mulher negra, mãe de uma menina negra…Posso te garantir que nunca saberemos o que é liberdade, de fato. Esse sentimento me toma principalmente por conta do aumento avassalador dos crimes raciais, do feminicídio e da violência contra as mulheres em especial das negras.

A desigualdade social tem empurrado historicamente a população negra para a base da pirâmide. Mas, no interior dessa desigualdade extrema, a mulher negra é a mais oprimida, porque sobre seus ombros pesam ao mesmo tempo três discriminações: racial, social e de gênero. Por isso nós, as mulheres negras, somos consideradas mais fortes, a mais resilientes e as que mais responsabilidades carregam no dia-a-dia da sobrevivência da família popular. Mas também contra isso é que nós lutamos, porque não queremos apenas sobreviver com nossos filhos, mas sim vivermos de forma plena e socialmente emancipada numa sociedade de igualdade racial e de gênero que me garanta emprego digno, educação, saúde e moradia e um ambiente de paz, sem racismo e sem machismo.

BRI: O que você diria para aqueles que defendem que não existe racismo no Brasil?

N.C.: É preciso priorizar a ligação dos partidos de esquerda, democráticos e progressistas com a luta racial, da população negra brasileira. Essa luta se torna ainda pior porque ainda é necessário explicar para as pessoas não negras, que essa luta é uma luta de todos, que a população branca precisa questionar seus privilégios enquanto pessoas não negras. O racismo é uma chaga social que deve ter como principal combatente as pessoas brancas, já que as pessoas negras já são vitimas dessa mazela. Disputar espaço em situações equânimes, deveria ser a principal luta social. Concentrar nossos esforços para elevar a participação da pessoas negras tanto nas instâncias partidárias quanto na representação política e nas lutas sociais. São tarefas de alcance estratégico para a transformação estrutural do país.

Por Thiago Manga

Thiago Manga é carioca, jornalista, assessor, já atuou em campanhas eleitorais. Atualmente é Diretor de Redação do Brasil Independente.

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