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Dia Internacional da Mulher: Viva Lélia Gonzalez

No Dia Internacional da Mulher, é tempo de celebrar Lélia Gonzalez, intelectual central para o feminismo negro

8 de Março é Dia Internacional das Mulheres. Lélia Gonzalez questionou veementemente: “Quais mulheres?”

O longo processo de marginalização do povo negro, imposto pelas práticas discriminatórias de uma sociedade marcada pelo autoritarismo, relegou a mulher negra à condição de setor mais oprimido e explorado da população brasileira. Lélia buscou essa conscientização para si e não se contentou em manter como “segredo”; todos os escritos, todos os feitos da sua militância tinham como ponto principal o papel e a situação da mulher preta na sociedade brasileira.

A crise econômica, política, social e cultural que emergiu nos anos 70 desencadeou e acelerou processos que já estavam se formando, principalmente pelo desenvolvimento do capitalismo dependente, e expôs como os seus efeitos são recebidos de forma diferente em amplos setores sociais, como aconteceu no movimento negro – do qual Lélia não só fez parte mas liderou durante muito tempo, fazendo o recorte de gênero. Dentro da dinâmica social e política dos anos 70 e 80, Lélia ajudou a compor o surgimento de novos atores sociais, bem como novos movimentos, como o das mulheres.

Lélia foi uma profunda crítica propositiva desse movimento de mulheres, que avançou mesmo com muitas contradições específicas. Lélia ousou questionar a lógica estrutural desse movimento e de vários setores da sociedade e, potencialmente, levou ao pódio a ausência da mulher preta nessas diversas e variadas narrativas. Lélia nunca negou que o feminismo, como teoria e prática, desempenhou um papel fundamental em nossas lutas e conquistas, na medida em que, ao apresentar novas questões, não apenas estimulou a formação de grupos e redes mas desenvolveu a busca por uma nova maneira de ser mulher.

As análises e buscas de Lélia, ao centralizar as análises em torno do conceito de capitalismo patriarcal ou patriarcado capitalista, revelaram as bases materiais e simbólicas da opressão das mulheres, o que constitui uma contribuição de importância crucial para a direção de nossas lutas como movimento. Mas Lélia não se contentou apenas com esses avanços iniciais. Apesar das contribuições fundamentais para a discussão da discriminação com base em gênero ou orientação sexual, o mesmo não aconteceu diante de outro tipo de discriminação, a racial.

Na década de 80, na qual Lélia emplacou o seu ativismo, ficou evidente que as referências formais denotavam um tipo de “esquecimento” da questão racial. É em meio a essa falta de intersecção que Lélia emplaca a categoria AMEFRICANIDADE – Lélia caracterizou assim a nomeação de todos os descendentes dos africanos, tanto os que foram trazidos pelo tráfico negreiro quanto aqueles que chegaram à América antes de seu “descobrimento”. E neste longo processo histórico, que marca a presença do negro no Novo Mundo, as mulheres pretas, ontem como hoje, têm um papel de fundamental importância.

No Brasil, Lélia focou seus estudos em São Paulo, Salvador, Rio de Janeiro e Rio Grande Sul, e também atravessou os continentes para comprovar que, no caso dos brasileiros, vamos encontrar as mulheres pretas como ativas participantes de todos os movimentos de resistência e libertação de que se tem notícia. Lélia, em muitos eventos, esteve junto de organizações femininas pretas como Aqualtune, Luisa Mahin, Grupo de Mulheres Negras do Rio de Janeiro, Nzinga, Coletivo de Mulheres Negras de São Paulo, Centro de Mulheres de Favelas e Periferia, Coletivo de Mulheres Negras da Baixada Santista, Grupo de Mulheres do MNU, Grupo de Mulheres de Calabar e outros.

Em novembro de 1987, Lélia teve extraordinária participação no Primeiro Encontro Nacional de Mulheres Negras, sobretudo no que se pensa em nível de discussão. Enquanto isso, no final dos anos 80, a sua presença também se faz visível nos encontros e congressos em outros países, argumentando e conseguindo introduzir a dimensão racial nas análises feministas.

A importância da atuação de Lélia Gonzalez no processo de organizar as mulheres pretas para a transformação social no Brasil transcende as últimas décadas que viveu. A discussão racial foi elevada a um outro patamar porque Lélia Gonzalez nunca se colocou acima da grande maioria preta, dos seus iguais. Lélia sabia das doenças mentais causadas pelo racismo, do quanto o negacionismo adoecia o nosso amor entre os nossos. Sabia o quanto o racismo fazia com que muitos de nós negassem a cor, ou quisessem estar com os não-pretos por não se aceitarem pretos no Brasil. A famosa frase de Lélia comprova tudo isso: “A gente não nasce negro, a gente se torna negro. É uma conquista dura, cruel e que se desenvolve pela vida da gente afora”.

Antes de se reconhecer negra, Lélia se casou com um branco e sentiu na pele o desprezo da diferença social. Separou-se. Abraçou o candomblé, filha de Oxum, especializou-se em história e antropologia. Defendia o panafricanismo e era leitora do psiquiatra Fanon. Em seu discurso na Constituinte de 88, denunciou que a precarização do trabalho tem raça e gênero direcionados.

Lélia teve aliadas brancas, sempre transitou bem entre a branquitude, mas chamou feminista branca de racista e movimento antirracista de machista. Rompeu fronteiras, transpôs barreiras quando se meteu na psicanálise, tendo Lacan como interesse principal.

Gritou: “A gente tá na Améfrica. Paremos de aceitar o racismo linguístico e todas essas paranoias; e você não entende o probrema do Framengo não driblar a cultura sexista, cês são uns menino ignorante que num sabe nada de Pretuguês”.

Sim, meus caros! Quando ouvirem ou lerem as palavras: Pretuguês, Améfrica e Mulherismo, saibam que são conceitos desenvolvidos pela magnífica Lélia Gonzalez. Mulher preta e periférica. E, muito antes de existir a interseccionalidade cunhada nos EUA, Lélia já tinha se antecipado aqui no Brasil o feminismo negro. Os escritos de Lélia, desde a década de 80, acentuam a identidade Mãe, a intelectualidade da mulher preta, duas questões que não devem ser separadas. Sem a busca da identidade de mulher preta, suas cantigas, suas rezas e cuidados (mãe preta), a cultura brasileira com certeza não teria a pluralidade que tem hoje. Eu saúdo e agradeço às minhas mais velhas:

Zezé Motta, Clementina de Jesus, Sueli Carneiro, Dandara, Maria Felipa, Nanny e tantas outras…

Sua benção, Lélia Gonzalez! Viva Lélia Gonzalez! Ora Ye Ye o!

E meu nome é Neudes Carvalho. Sabe por quê? Com nome e sobrenome, como bem disse Lélia Gonzalez!

Eparrey, Oya!

 

Neudes Carvalho é ativista e liderança do Movimento Negro em São Paulo.

 

Este texto é opinativo e não reflete, necessariamente, a opinião do site Brasil Independente.

Por Redação

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