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Luta do povo haitiano – O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva vai oferecer treinamento à Polícia Nacional do Haiti. Lula teria comunicado ao primeiro-ministro Ariel Henry, a oferta de parceria entre as duas polícias, quando de um encontro em junho dos dois governantes, em Paris. A Polícia Federal estaria envolvida nas discussões. A informação de que o Brasil participaria do treinamento dos policiais haitianos foi veiculada pela BBC News Brasil em 25 de agosto.
O “contingente” brasileiro faria parte de uma força policial multinacional não comandada pela ONU, mas que precisaria ser aprovada pelo Conselho de Segurança, em um procedimento de terceirização inédito nas Nações Unidas.
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Henry pertence ao partido de extrema direita PHTK, e tem sua legitimidade contestada por amplos setores haitianos. Ele ocupa o cargo por ter sido indicado pelo CORE*, grupo de países do qual o Brasil faz parte. Pesa inclusive sobre Henry, a suspeita de estar envolvido no assassinato do então presidente Jovenel Moïse, em 7 de julho 2021.
A parceria brasileira ocorreria através do envio de destacamentos de elite, como o BOPE, o Batalhão de Operações de Especiais do Rio de Janeiro. Policiais haitianos também viriam ao Brasil como parte do treinamento. O artigo da BBC News menciona também algumas formas com que essa parceria poderia se dar, como ajudar na criação de um serviço de inteligência para investigações e na capacitação de grupos táticos de pronta intervenção.
A possibilidade de participação do Brasil no treinamento da polícia haitiana ocorre no momento em que o Conselho de Segurança das Nações Unidas se reúne em 5 de setembro, para deliberar sobre uma nova intervenção externa, desta vez liderada pelo Quênia, que passaria a ter o mesmo papel que coube ao Brasil no período de 2004 a 2017.
A justificativa para a intervenção é o combate às dezenas de gangues que exercem controle em diversas áreas do país, inclusive na capital Porto Príncipe, as quais são atribuídas milhares de mortes e centenas de sequestros. Mas setores organizados do país se opõem a mais uma interferência estrangeira em solo haitiano.
O movimento justiceiro Bwa Kale
Em abril surgiu o movimento Bwa Kale, que passou a confrontar diretamente as gangues, conseguindo reduzir as ocorrências de sequestros. Um incidente em que uma multidão invadiu uma delegacia para linchar membros de uma gangue e queimar seus corpos, marcou o início de uma revolta nacional espontânea e sem líderes chamada Bwa Kale, que significa literalmente “madeira descascada”. O termo se refere à ferramenta usada em uma forma severa de castigo corporal em alguns lares haitianos.
O movimento reflete não apenas a vontade de seus participantes de identificar, capturar e matar os criminosos violentos, que há muito aterrorizam o país com sequestros, extorsões e assassinatos, mas também de empregar os mesmos métodos horríveis de violência que as gangues usam contra a população.
Dá para imaginar que o surgimento do Bwa Kale deve ter produzido ondas de choque, que puseram em alerta máximo as autoridades haitianas e seus apoiadores internacionais.
A organização de “direitos humanos” Human Rights Watch – HRW deu sua benção para a intervenção externa. Ligada ao partido democrata norte-americano e tendo como maior financiador, o bilionário e especulador George Soros, da Open Society, a organização publicou em 14 de agosto o relatório Vivendo um Pesadelo (Living a Nightmare).
Nele, HRW justifica a intervenção externa como “consensual, porque foi solicitada pelas autoridades haitianas”, mas também admite que os haitianos consideram essas mesmas autoridades como “ilegítimas e corruptas”, e ligadas a gangues.
Pesquisa de opinião recente encomendada pelo governo haitiano indicou que “69% da população apoiam a intervenção”, mas a consulta abrangeu apenas 1.330 haitianos, como revelado pela agência Reuters. O jornalista canadense Travis Ross questiona a metodologia a pesquisa em seu artigo no Haiti Liberté, inclusive se o minúsculo universo da amostragem seria representativo da população do país, de cerca de 11,5 milhões de habitantes. E acrescenta: “os protestos mostram claramente que muitos milhares de haitianos rejeitam qualquer intervenção militar estrangeira.
A CELAC e a Declaração de Buenos Aires
Em 23-24 de janeiro deste ano ocorreu a sétima cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos –CELAC, na Argentina. O primeiro-ministro haitiano, Ariel Henry, conseguiu que fosse incluída na declaração final (itens 101 e 102), uma convocação a todos os países membros, que considerassem as opções apresentadas pelo secretário-geral das Nações Unidas, Antônio Guterres, na carta de 8 de setembro de 2022 que ele dirigira ao Conselho de Segurança (S/2022/747).
O objetivo do secretário-geral era a criação de uma força multinacional especializada que fora solicitada pelo governo do Haiti, “para assistir as forças de segurança haitianas….na luta contra a proliferação do crime organizado, tráfico ilegal de armas e erradicar as gangues que tornaram refém o país”. A CARICOM, a Comunidade do Caribe, também se colocou a favor da intervenção.
Conforme relatado no periódico Haiti Liberté, Guterres havia proposto que “um ou vários Estados-membros, agindo bilateralmente a convite e em cooperação com o Governo do Haiti, pudessem implementar com urgência, uma força de ação rápida para apoiar a Polícia Nacional Haitiana”. O Secretario apresentou então dois enfoques diferentes:
Opção 1: uma “força-tarefa policial multinacional” que seria apenas consultiva, enquanto a Polícia Nacional do Haiti (PNH) continuaria a ser a única força na linha de frente do policiamento operacional e das operações contra as gangues. Na teoria, essa força-tarefa apenas aconselharia, avaliaria e treinaria a PNH, enquanto “examina as ameaças à segurança nacional e à ordem pública” que as gangues representam.
Opção 2: uma “força especial multinacional”, que se envolveria militarmente em “operações conjuntas de ataque, isolamento e contenção em todo o país” contra as gangues.
Ainda Segundo Guterres, em qualquer das duas opções, a intervenção estrangeira seria conduzida pelo Haiti, ficando a PNH na liderança. O fato é que a Declaração de Buenos Aires concedeu legitimidade a Ariel Henry, um governante que está no poder sem ter o aval da população de seu país, mas com apoio dos Estados Unidos e dos demais membros do grupo CORE.
Quênia aceita liderar a intervenção
Desde outubro de 2022, os EUA, juntamente com o Canadá e França, vinha buscando uma liderança para a coalizão que promoveria a intervenção do Haiti. Os possíveis candidatos a serem convencidos na ocasião eram o próprio Canadá, além do México e Noruega.
Ainda no início de julho deste ano, os EUA prosseguiam ativamente na busca por alguma nação para chefiar uma força multinacional para intervir no Haiti, conforme declarou o secretário de estado Antony Blinken na Cúpula do Caribe, em Georgetown, quando se reuniu com Ariel Henry.
Em 14 de julho, o Conselho de Segurança da ONU aprovou por unanimidade a Resolução 2692, que solicitava a Guterres que delineasse “toda a gama de opções de apoio que as Nações Unidas poderiam fornecer para melhorar a situação de segurança”, incluindo “treinamento adicional para a Polícia Nacional Haitiana, apoio a uma força multinacional não pertencente às Nações Unidas ou uma possível operação de manutenção da paz”.
Em 29 de julho, o ministro do exterior de Quênia, Alfred Mutua, anunciou via Twitter que estava considerando aceitar a liderança da força multinacional, a pedido do grupo de países, “Amigos do Haiti”. Mutua acrescentou que a decisão estava de acordo com seu comprometimento com o Pan-Africanismo. Em 20 de agosto, uma missão queniana chegou ao Haiti para fazer uma avaliação inicial da segurança no país caribenho.
O Quênia enviaria mil oficiais de polícia para reforçar a PNH. Ruanda, Bahamas, Barbados, e Jamaica também fariam parte da missão. No entanto, a polícia queniana é notória por sua brutalidade, um legado da época do domínio colonial, quando o papel da polícia era servir aos interesses da coroa britânica.
Anistia Internacional questiona a liderança do Quênia
Em carta dirigida aos membros do Conselho de Segurança da ONU em 18 de agosto de 2023, a organização “expressa profunda preocupação com o anúncio de que policiais quenianos podem liderar uma ‘força internacional especializada’, conforme solicitado pelo governo haitiano, para ajudar temporariamente a Polícia Nacional Haitiana (PNH) a lidar com a insegurança causada pela violência de gangues”. A Anistia Internacional salienta na carta, o histórico de violência das forças de segurança quenianas contra manifestantes, que vêm causando no país africano dezenas de mortes de adultos e crianças.
O documento ressalta também que, quando da intervenção anterior no Haiti (2004 a 2017), ocorreram dezenas de casos de abusos cometidos pelas tropas da Minustah, sem que ocorresse a responsabilização dos culpados e o acesso à justiça para as vítimas desses abusos. E acrescenta que antes de qualquer emprego de forças externas, deveriam ser implementados mecanismos de salvaguarda dos direitos das populações locais.
A Anistia Internacional também abordou na carta, a questão do tratamento que é dispensado aos haitianos que buscam refúgio em outros países das Américas, onde “governos de toda a região têm efetuado deportações em massa e políticas racistas”. E complementa: “uma resposta responsável e humana aos haitianos que buscam por segurança precisa ser implementada nas Américas, concomitantemente a qualquer discussão sobre o aumento da estabilidade no país”.
Novo presidente da CELAC rejeita intervenção
A partir da sétima cúpula da CELAC, a organização passou a ser liderada por Ralph Gonsalves, primeiro-ministro de São Vicente e Granadinas, em substituição ao presidente argentino, Alberto Fernández. Gonsalves já se posicionara anteriormente de forma categórica que “qualquer intervenção no Haiti precisaria ter a adesão das partes interessadas haitianas”.
Gonsalves também reconhece que muitos haitianos não aceitam a legitimidade do atual governo haitiano do primeiro-ministro, Ariel Henry. Ele está relutante em apoiar qualquer forma de intervenção externa no Haiti.
Agora, ocupando a presidência da CELAC, o líder do pequeno arquipélago ao sul do mar do Caribe, que conta com uma população de cerca de 107 mil habitantes, tentará contrabalançar a influência de Lula junto aos líderes regionais, salienta Travis Ross na terceira parte de seu artigo sobre os planos dos EUA e do Canadá de promoverem a interferência externa no Haiti. Conseguirá?
Concluindo:
Parece que o Brasil decidiu se colocar do lado errado da luta pela autodeterminação do povo haitiano, ao ajudar a manter no poder, por tempo ainda indeterminado, um governo ilegítimo e claramente impopular. O envio de tropas ou contingentes policiais deveria ser precedido pela marcação de um calendário eleitoral, acertado com amplos setores da sociedade organizada, que precisaria também ter voz sobre os diversos aspectos de uma possível intervenção externa.
Por Ruben Rosenthal, professor aposentado da UENF, responsável pelo blogue Chacoalhando e pelo programa de entrevistas Agenda Mundo, veiculado no canal da TV GGN e da TV Chacoalhando
*O grupo CORE é composto por representantes da Alemanha, Brasil, Canadá, Espanha, EUA, França, União Europeia e Organização dos Estados Americanos.
*Texto publicado originalmente no jornal GNN
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Este texto é opinativo e não reflete, necessariamente, a opinião do site Brasil Independente