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Leonel Brizola comparava as urnas eletrônicas brasileiras com a argola que se põe no nariz do touro para puxá-lo por uma corda, docilmente, para onde o seu dono quiser. Brizola usou essa imagem rural, como gostava de fazer na política, no programa do PDT que foi ao ar em cadeia nacional de rádio e televisão no dia 28 de junho de 2001, quase totalmente dedicado à fragilidade do voto eletrônico. Nessa ocasião ele alertou, profeticamente, que os chamados ‘negócios da China’ tinham se tornado “negócios do Brasil”, por conta das privatizações neoliberais iniciadas no governo Collor, aceleradas por Fernando Henrique, retomadas por Michel Temer e reaceleradas pela dupla Paulo Guedes/ Bolsonaro.
O sistema eleitoral que usamos no Brasil, 100% eletrônico, do cadastro de eleitores à totalização dos votos, passando pelas urnas de votação que não imprimem o voto e não permitem recontagem – já dizia Brizola – são a principal ferramenta da elite que domina o touro Brasil montando “governos sucessivos” graças a eleições manipuladas que a Justiça Eleitoral – com ajuda da grande mídia – garante que são ‘100% seguras”.
Nunca faltou a Brizola a coragem de criticar o sistema de votação informatizado do Brasil. Além disso, ele fora vítima – salvo a tempo pela contagem paralela de votos da Rádio JB – da fraude eletrônica da Proconsult. Um ano antes da eleição presidencial de 1989, preocupado com a possibilidade de acontecer uma nova Proconsult (afinal era a primeira eleição presidencial depois de mais de duas décadas de ditadura), o PDT pediu formalmente ao TSE logo no início de 1989 que fosse feita uma auditoria internacional do programa de totalização que seria usado na eleição presidencial.
Vítima da Pronconsult e discípulo de Vargas – o criador da Justiça Eleitoral para que a verdade eleitoral, eleições limpas e honestas, passasse a existir no Brasil – Brizola foi um dos poucos políticos a bater de frente com os integrantes da Justiça Eleitoral.
O pedido de auditoria internacional do programa de totalização da presidencial de 1989 só entrou na pauta do TSE em setembro, na véspera do pleito, quando não
havia mais tempo hábil para nada, mesmo se fosse aprovado. A petição de Brizola foi sumariamente rejeitada.
Houve muita coisa suspeita na eleição presidencial de 89. Nos dias que antecederam o primeiro turno a pergunta que se fazia não era se haveria segundo turno ou se a eleição se decidiria no primeiro, nem que ficaria em primeiro lugar. A dúvida era quem iria para o segundo turno com Fernando Collor, o candidato da TV Globo: seria Brizola ou seria Lula? Brizola perdeu por menos de 0,5%, diferença tão insignificante que poderia ser alterada por uma recontagem.
O medo era Brizola no segundo turno: no debate pela TV, Brizola reduziria Collor a seu verdadeiro tamanho político e pessoal.
Nos anos e décadas seguintes, à medida que o sistema do voto eletrônico avançava, Brizola e o PDT nunca desistiram de pedir aquilo que seria seu aperfeiçoamento natural, a recontagem dos resultados através do registro impresso de cada voto, naturalmente com todas as cautelas para proteger o sigilo do voto, o segredo da escolha feita pelo eleitor.
O Congresso também agiu nesse sentido e aprovou três leis que exigiam a impressão do voto eletrônico, sendo a primeira delas logo após o escândalo da violação do painel eletrônico do Senado, no final dos anos 90, que levou à renúncia do então presidente da Casa, Antônio Carlos Magalhães, e do Líder do Governo, José Roberto Arruda, para evitarem a cassação de seus mandatos.
A primeira dessas leis, a Lei n° 10.408, de 2002, de iniciativa do senador Roberto Requião (PMDB-PR), foi sabotada pelo Ministro Nelson Jobim, então presidente do TSE. Embora tivesse prometido a Brizola que todas as urnas do país imprimiriam o voto nas eleição presidencial daquele ano, o voto eletrônico impresso não passou de uma experiência nessa eleição, ao ser usado em apenas 150 dos cerca de 5.500 municípios brasileiros.
Jobim, na época, usou o argumento de que seria necessário “testar” a novidade, antes de estendê-la para todo o país, embora tenha garantido a Brizola, inicialmente, indo pessoalmente a casa do fundador do PDT, que pelo menos 50% das urnas eletrônicas imprimiriam o voto. Não imprimiram com um agravante:
na normatização do pleito presidencial de 2002, o TSE não alertou os mesários sobre os procedimentos indispensáveis para a impressão do voto.
E a primeira lei do voto impresso, do Senador Requião, entrou em vigor em janeiro de 2002, foi usada na eleição presidencial do mesmo ano, em que Lula derrotou José Serra, mas foi revogada logo depois, em 2003, por iniciativa de Nelson Jobim, com a ajuda dos senadores Eduardo Azeredo (PSDB) e Demóstenes Torres (DEM) – aliados de Jobim – ambos posteriormente cassados por outros motivos.
Uma segunda lei (nº 12.034) determinando a impressão do voto eletrônico foi aprovada em 2009, por iniciativa dos deputados federais Brizola Neto (PDT) e Flávio Dino (PC do B), sancionada pelo Lula apesar do esforço de Nelson Jobim para que Lula a vetasse, para ser implementada nas eleições de 2014, a da reeleição de Dilma derrotando Aécio Neves, também do PSDB. Mas em 2011, por iniciativa da procuradora Sandra Cureau, do Ministério Público Federal, a implementação da lei foi suspensa e posteriormente revogada, pelo STF.
O assunto ficou parado até que quatro anos depois o então deputado Jair Messias Bolsonaro, em 2015, propusesse nova lei. Bolsonaro, nessa época, era uma espécie de desafiador liliputiano em briga de cachorro grande e aproveitou para assenhorear-se da reivindicação do voto impresso que já figurara nas manifestações de protesto de 2013. Essa lei, a terceira, foi aprovada e determinava a impressão do voto em 2018.
A presidente Dilma Rousseff, em um de seus últimos atos antes de ser deposta, com base em parecer do TSE que alegava altos custos para a implementação do voto impresso, vetou a lei de Bolsonaro aprovada pela Câmara; Eduardo Cunha, presidente da Câmara, derrubou o veto de Dilma e a lei entrou em vigor para ser usada já nas eleições presidenciais de 2018.
Só que, mais uma vez, via manobras dissimuladas, o TSE passou a trabalhar para que o voto eletrônico impresso não fosse implementado. Inicialmente a pretexto de insuficiência de tempo para cumprir a lei, o então presidente do TSE, ministro Gilmar Mendes, decidiu que das 450 mil urnas eletrônicas em uso no país apenas 30 mil imprimiriam o voto, em decisão monocrática; mas a ministra Raquel Dodge, titular do Ministério Público Federal, também monocraticamente, em abril de 2018 considerou “desnecessária” e dispendiosa a impressão do voto eletrônico, determinou que não era necessária a impressão do voto em nenhuma urna no pleito que elegeu o capitão Jair Messias Bolsonaro presidente da República.
Veio a campanha, muito passional e dominada pelas fake news disparadas por Bolsonaro contra os candidatos de esquerda, pela onda da cura gay e até pela história da mamadeira erótica; a possibilidade de fraude eletrônica mudar a vontade dos eleitores, já que não seria possível a recontagem de votos, não entrou em discussão na campanha.
Exceto quando Bolsonaro passa para o segundo turno e faltando dias para disputar o segundo turno com o candidato Fernando Haddad, do PT, ele afirma a todos os meios de comunicação que só haveria uma maneira dele não ser eleito presidente do Brasil – fraude nas urnas eletrônicas.
Como o resultado garantiu a sua anunciada vitória, ele nunca mais tocou no assunto embora seja impossível recorrer à recontagem de votos no Brasil, apesar das três leis que a impunham – todas derrubadas em diferentes situações.
Assim, prevalece para as futuras eleições um sistema que arrogantemente se presume perfeito e inviolável e recusa irracionalmente os mecanismos de verificação e dissuasão que o voto impresso permitiria. É uma volta aos tempos anteriores à Revolução de 30 e ao voto secreto instituído por Getúlio Vargas.
Por Osvaldo Maneschy publicado originalmente em Toda Palavra