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Opinião: “Ciro Gomes vai ao encontro do povo brasileiro”

Ciro Gomes e o povo brasileiro – Ao longo de sua exitosa trajetória política, Ciro Gomes construiu sua imagem sob o signo da racionalidade. Poderosas estatísticas, números, programas e realizações detalhadamente explicadas por um conjunto de ideias concatenadas, são as marcas que até então definiram sua identidade pública.

Um político que sempre se mostrou como um gestor competente e um “aluno aplicado” em estudar e aprender, lembrando a imagem do personagem criado por seu conterrâneo, o gênio Chico Anysio, na famosa “escolinha do professor Raymundo”, onde sempre respondia com um “eu queria ter um filho assim” após uma resposta brilhante do “seu Ptolomeu”.

Todos esses acertos e vitórias, que o transformou num político sempre bem avaliado em suas experiências como prefeito, governador, deputado e ministro não foram capazes de levá-lo a um segundo turno numa eleição presidencial, e parecem ser menos capazes ainda de levá-lo a vitória nesse Brasil novo do século XXI.

Os ativos políticos acumulados por Ciro Gomes até agora não são suficientes para se comunicar com um “Brasil pós-católico” e uma democracia cada vez mais de massa. No entanto, os últimos movimentos de Ciro têm demostrado que está disposto a fazer uma virada em sua vida política, falar também com a linguagem e os signos da massa.

A rebeldia propagada pelo presidenciável cearense parece englobar também a busca por sintonia com as transformações que o Brasil tem vivido nas últimas décadas, isto é, com dois fenômenos que se complementam: uma profunda revolução cultural religiosa, que consiste na conversão em massa de nossas classes populares em evangélicos pentecostais e um avassalador aumento da participação política das camadas mais pobres, trazendo uma outra linguagem para o centro da política.

Ao posar numa foto em um culto evangélico simples ao lado da esposa, e com a Bíblia na mão, Ciro cruza o portal do mundo popular, articulando os dois dos principais pilares que o sustenta: a religião e a família.

Se a religião é capaz de traduzir numa linguagem simples problemas gerais complexos da experiência humana, que abrangem tanto as lutas concretas pela sobrevivência, dramas psicológicos até o próprio sentido da existência, a ideia geral de família opera de forma similar, como um símbolo que reúne ocultamente um conjunto de aspirações profundas, pois os pré-requisitos para a estabilidade familiar contém minimamente o alcance de trabalho, renda, moradia, afetos e emoções relativamente estáveis, enfim, obter elementos caros a vida social e psíquica, que por muitas vezes tornam-se lutas dramáticas, especialmente, nas classes populares.

O menino de Sobral que cresceu numa atmosfera religiosa, inclusive morando por um tempo em um convento, vai ao encontro de um universo de signos caríssimos para as massas religiosas e suas expectativas em relação ao político, sobretudo, a possibilidade do agente político permitir ser instrumento dos planos de Deus.

Acena para milhões de brasileiros que não creem que a força da racionalidade pode sozinha resolver seus problemas mais terríveis, que por outro lado, creem, como dizem em sua linguagem, que o “copo precisa estar meio vazio”, para a outra parte ser preenchida pelo Espírito Santo.

Ciro Gomes busca a empatia com o tipo social religioso dominante no Brasil. E o núcleo essencial da empatia com aquele que crê, isto é, com aquele em que a religião é um traço marcante de sua identidade e mediação com o mundo, se dá, de forma dominante, pelo reconhecimento da veracidade de sua crença.

Ao questionar se o candidato crê, e essa é a pergunta principal que este ator social faz, ele questiona se o candidato é ou não “um dos nossos”, digno de sua simpatia espontânea, confiança, etc. Isso se dá, porque em sua crença, se o indivíduo está aberto e/ou afeito a possibilidade da intimidade com Deus, todas as outras coisas tornam-se secundárias, incluindo suas posições políticas/programáticas, já que estas poderiam ser mudadas por Deus.

Cabe ressaltar que, a noção de crença neste caso não é uma fé vaga em algo que não entendemos, não é num Deus distante que criou o mundo e os homens, mas antes de tudo num Deus que interfere na vida do sujeito, operando mudanças no destino de quem crê Nele.

Essa visão é traduzida em termos pentecostais como “O Deus vivo”, o “poder sobrenatural da fé” entre outros. Enfim, não se trata da crença em um Deus impessoal numa versão intelectualizada da espiritualidade ou mesmo percebido por uma experiência mística sofisticada, é a crença antes de tudo num Deus pessoal que se apresenta quase que cotidianamente, e que pode ser percebido concretamente, através da sua ação interventora no mundo.

Ação esta que, segundo sua visão de mundo, está “presente” na história, como também na vida pessoal. Vale lembrar que, o tipo religioso contemporâneo, sobretudo o evangélico/pentencostal, interpreta a Bíblia (especialmente o antigo testamento) como um “documento” (no sentido de prova) que atesta a intervenção de Deus na História. Em resumo, o tipo social religioso busca no candidato a presença do traço que define sua própria personalidade, isto é, a intimidade com Deus.

E sobre o outro pilar, o da família, Ciro avança em tema espinhoso para a esquerda brasileira. A esquerda tem tido dificuldades em produzir um discurso capaz de abordar a família enquanto unidade sagrada da vida individual e coletiva. Por isso se tornou vulnerável ao discurso de “guerra cultural” que identifica na política de costumes e na descriminalização das drogas as grandes ameaças à unidade familiar.

A busca por segurança é tema fundamental para as classes populares e médias que se sentem atraídas por discursos que prometem identificar e debelar o mal causador da insegurança. Não se trata apenas do tema da violência, mas sim de um conjunto mais amplo de significados que podemos abarcar com a noção de “segurança ontológica”: a necessidade de construir certeza mínima sobre a continuidade dos ambientes sociais essenciais para a vida que se leva, entre os quais devemos destacar a religião e a família.

Posto tudo isso, duas perguntam nos restam.

A primeira delas, mais pragmática, é se parte significativa desse “povo” responderá ao aceno de Ciro, ou ao menos esse movimento neutralize possíveis ataques vindos da “guerra cultural”.

A outra, mais complexa, é se o grande projeto nacional desenvolvimentista cabe dentro dessa nova linguagem, em outras palavras, é perguntar a respeito da elasticidade da relação transcendência/imanência contido respectivamente no binômio simbólico religião/família, se este é capaz de abarcar também o binômio simbólico do nacionalismo/povo.

Ante essas dúvidas fica a certeza da tentativa da utopia experimentalista anunciada pelo filósofo Mangabeira Unger: unir paixão (irracionalidade) e razão (intelecto) a serviço da transformação daquilo que se apresenta ser como imutável.

Por Brand Arenari, Doutor em sociologia pela universidade Humboldt de Berlim (ALE), professor do departamento de ciência política da Universidade Federal Fluminense (UFF), foi diretor do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada/IPEA.

Publicado originalmente no Portal Disparada.

Este texto é opinativo e não reflete, necessariamente, a opinião do site Brasil Independente.

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Por Redação

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