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Em fevereiro, três estados tiveram recordes de mortes e colapso no sistema de saúde, antes restrito ao Amazonas, agora atinge várias partes do país; março deve ser ainda pior
O Brasil registrou, em fevereiro, 30.484 mortes pela Covid-19, segundo dados apurados pelo consórcio de veículos de imprensa junto às secretarias de Saúde do país. Mesmo com dias a menos e últimos dias durante um fim de semana – o que afeta os registros das mortes –, fevereiro teve o segundo número mais alto de mortes desde o início da pandemia, e o maior desde julho.
Três estados tiveram recordes de mortes: Minas Gerais e Rondônia, pelo segundo mês consecutivo, e Roraima, que ultrapassou os registros de mortes vistos em julho. O colapso no sistema de saúde, antes restrito ao Amazonas, agora atinge várias partes do país.
As médias móveis diárias calculadas pelo consórcio de imprensa estão acima de mil mortes por dia há 39 dias. No dia 25, o Brasil registrou o recorde de mortes em 24h desde o início da pandemia: 1.582 pessoas morreram.
O dado referente às mortes de fevereiro foi calculado subtraindo-se as mortes totais até janeiro (224.534) do total de mortes até 28 de fevereiro (255.018). Os números dos meses anteriores foram determinados com a mesma metodologia.
Pneumologista prevê tragédia em março
Em vários municípios brasileiros, leitos de enfermaria e UTI estão lotados de pacientes com covid-19. Não há mais vagas e os doentes não param de chegar. De acordo com dados das secretarias estaduais de saúde, 17 estados têm ocupação em hospitais acima de 80%, um nível considerado crítico.
Outros oitos estados têm taxas que superam os 90% — no Rio Grande do Sul, por exemplo, o número chegou a 100%. Onde ficarão essas pessoas que precisam de atendimento? E como poderemos conter essa avalanche de novos casos que põe em xeque o sistema de saúde e poderia afetar até mesmo a estabilidade social do país? O que fazer para se proteger num momento tão crítico?
Esses são alguns dos temas que preocupam a pneumologista Margareth Dalcolmo, professora e pesquisadora da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), no Rio de Janeiro. Em entrevista à BBC News Brasil, a médica, que se tornou uma das vozes mais ativas e influentes da ciência brasileira durante a pandemia, analisa como chegamos até esse estágio da pandemia e o que pode ser feito a partir de agora para aliviar a crise sanitária.
BBC News Brasil – Nos últimos dias, acompanhamos notícias de diversas cidades com lotação em hospitais e colapso dos sistemas de saúde. Como classifica o atual estágio da pandemia de covid-19 no Brasil?
Margareth Dalcolmo – Nós estamos num momento muito grave da pandemia no Brasil, com um recrudescimento já materializado daquilo que consideramos uma segunda onda. Isso não nos surpreende, uma vez que as medidas de controle sanitário não foram só controversas, mas também ineficientes por um longo tempo. Nós sabemos também que a única solução possível para controlar a pandemia será a vacinação, e a campanha está apenas no início, numa velocidade muito aquém do desejável.
Para completar, não temos observado um comportamento de solidariedade, não só de todos os cidadãos, mas também de nossas autoridades políticas. Não vemos aumentar uma consciência cívica do que é preciso fazer neste momento, apesar do cansaço de um ano de pandemia. Seria necessário todos nós mantermos comportamentos individuais e coletivos de muito cuidado, com uso de máscara e distanciamento social. Já manifestei de que precisamos de medidas mais drásticas, com o fechamento de muitos serviços, para diminuir a circulação de pessoas e reduzir a transmissão viral.
A nossa grande preocupação hoje está no fato de que a transmissão viral é o grande mecanismo propiciador do aparecimento de novas variantes. E, considerando que já estamos enfrentando as primeiras mutações, precisamos responder a isso com estudos, com vigilância genômica. Precisamos entender se as vacinas utilizadas agora são capazes de nos proteger contra essas variantes. E, sobretudo, precisamos colaborar enquanto sociedade para não criar um cenário que propicie o aparecimento de novas versões do coronavírus.
BBC News Brasil – Desde novembro de 2020, acompanhamos uma série de eventos que provocaram grandes aglomerações. Foi o caso das eleições municipais, das festas do final de ano, do Enem e agora do Carnaval. Algum desses episódios foi decisivo para chegarmos a crise de agora? Ou foi uma conjunção de fatores?
Dalcolmo – Foi realmente essa conjunção de fatores provocada por uma falta de entendimento do discurso dos cientistas, dos médicos e dos pesquisadores, que sempre estimularam uma consciência cívica coletiva, de solidariedade. A covid-19 mudou de lugar no Brasil e começou a entrar em nossas casas. Nós vemos agora pessoas que ficaram um ano em isolamento pegando a doença. Como isso é possível? Os jovens daquela família estão indo para as ruas e trazendo o vírus de volta.
As festas de final de ano foram trágicas. Eu mesma me manifestei diversas vezes dizendo que o Brasil teria o mais triste janeiro de sua história. E realmente tivemos, inclusive com o aparecimento da variante brasileira, identificada na família que viajou ao Japão vinda do Amazonas.
E agora eu não tenho dúvida de que teremos o mais triste março de nossas vidas. Isso é resultado do Carnaval e do descompasso entre o que nós, cientistas, dizemos, e o que as autoridades afirmam. Nos últimos dias, ouvimos que não é pra usar máscaras. Não há dúvidas, está demonstrado que a máscara é uma barreira mecânica que protege quem usa e todo mundo ao redor.
Todos esses fatores, somados ao cansaço de uma pandemia tão longa, geram um comportamento que tem se mostrado desastroso. O que vemos agora então é uma pressão enorme sobre o sistema de saúde, que sofre com uma taxa de ocupação de leitos acima de qualquer nível desejado em hospitais públicos e privados.
Junto a isso, há outro fator muito grave: a covid-19 se rejuvenesce no Brasil. Hoje vemos muitos jovens internados, que desenvolvem casos graves. Esses indivíduos têm uma força de transmissão enorme, porque eles se aglomeram, cantam, falam alto e repetem todos aqueles comportamentos que sabemos serem decisivos para transmitir uma doença viral respiratória.
BBC News Brasil – Na primeira onda, Manaus foi a primeira cidade brasileira a sofrer com a pandemia, em meados de abril de 2020. O mesmo se repetiu agora: a capital amazonense “antecipou” algo que veríamos ocorrer dali a algumas semanas em vários outros lugares. O que faz Manaus ser essa espécie de “medidor” da pandemia do país?
Dalcolmo – Eu não diria que Manaus é um medidor. A situação do Amazonas e de toda região Norte é muito particular. Manaus é uma cidade afastada, de difícil acesso, e teve um pico epidêmico precoce, muito antes do Sul e do Sudeste. Aqui, nós vimos o auge da primeira onda no final de junho, começo de julho. Manaus sofreu isso em abril. É preciso pensar que ali é Zona Franca, com um fluxo enorme de pessoas.
O que aconteceu foi que a covid-19 chegou, atingiu uma grande proporção da população de baixa renda e causou aquela tragédia de túmulos em cemitérios sendo abertos a toque de caixa. Mas era natural que essa imunidade conferida pela doença não fosse muito duradoura. O Amazonas nunca tomou medidas drásticas de fechar escolas, comércio ou fazer lockdowns.
Portanto, esperava-se que toda essa situação eclodisse, ainda mais com o surgimento de uma nova variante, que logo se expandiu para todo o Brasil. Manaus tem um fluxo de voos que diminuiu, mas continua acontecendo até hoje. Logo, não é de se estranhar que a variante brasileira esteja no Reino Unido e a variante britânica se encontre no Brasil.
Diante de tudo isso, Manaus se tornou um paradigma de tudo aquilo que nós desejaríamos que não acontecesse.
A situação por lá foi agravada pela desídia administrativa. Não é possível que uma cidade como Manaus tenha um único fornecedor de oxigênio, sabendo que a logística de entrega é muito complexa. Se a mesma crise se abatesse sobre o Rio de Janeiro, onde a letalidade e a taxa de transmissão da covid-19 está alta, dificilmente teríamos problema igual, porque aqui nós não dependemos de um fornecedor de oxigênio só, temos quatro ou cinco.
Por fim, a pandemia em Manaus revela a absoluta e intolerável desigualdade social do Brasil. Porque quem morre no Amazonas é pobre e indígena. A classe média alta foi embora se tratar nos hospitais do Sudeste. A quantidade de jatos privados que foram alugados por 150 mil reais em Manaus para trazer pacientes para o Rio de Janeiro e São Paulo é enorme e isso está registrado.
A covid-19 é um marco em lugares como o Brasil e os Estados Unidos. Em Nova York, 40% dos óbitos pela doença aconteceram com pretos e pobres. A mesma coisa se repete aqui. Nós podemos dar inúmeros exemplos das medidas sanitárias necessárias para conter a crise, mas todas elas precisam ser coerentes e ter ligação com a questão social do país e das nossas desigualdades.
BBC News Brasil – Esse colapso poderia ser evitado com medidas que restringissem a circulação de pessoas e as aglomerações. Mas agora que essa oportunidade já passou, tem alguma coisa que podemos fazer para aliviar a situação?
Dalcolmo – Eu acredito que sim. A Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, da qual sou presidente eleita, publicou um documento assinado por outras 70 sociedades médicas que contesta esse discurso contra as máscaras que ouvimos recentemente. Nosso manifesto mostra como esses equipamentos são ferramentas de proteção individual e coletiva.
Esse discurso contraditório entre a ciência e a política tem causado muitos males à sociedade brasileira. Só pra dar um exemplo, hoje de manhã eu estava num voo para voltar ao Rio de Janeiro, após resolver questões familiares, e sentei ao lado de dois jovens, que eram irmãos. Eles entraram no avião e tiraram as máscaras. Eu imediatamente chamei a comissária e disse, ainda antes do pouso: se eles não colocarem a máscara adequadamente, nós chamaremos o comandante, não haverá decolagem e os dois serão retirados imediatamente. Eu fui aplaudida pelo resto dos passageiros.
Não estou falando aqui de dois jovens pobres. Eles estavam viajando de avião, ora. E, quando já estávamos decolando, de novo os dois resolveram abaixar a máscara. Ah, aí eu fiquei zangada. Conversei de novo com a comissária e disse que, se ela não tomasse providências, eu mesma iria conversar com o comandante. No meio disso tudo, algumas pessoas me reconheceram, tinham me visto na televisão, gritaram para eles colocarem as máscaras.
Eu percebo então que existe um sentimento, ao menos naqueles indivíduos que têm um pouquinho mais de consciência, de que um comportamento como o desses dois irmãos é execrável e faz mal para o coletivo.
Quantas vezes nós falamos que aglomerações não poderiam acontecer? Eu entendo que as pessoas estejam cansadas. Mas nós também estamos. Estamos cansados sobretudo de ter que contar mortos todos os dias. Chega disso. Eu quero que a sociedade, o governo, as autoridades e todos nós passemos a nos comportar de maneira mais civilizada.
BBC News Brasil – Ainda no campo das medidas restritivas, governadores e prefeitos têm anunciado toques de restrição e fechamento de comércios à noite e durante a madrugada. Estratégias como essa fazem algum sentido?
Dalcolmo – Na forma como elas estão sendo propostas, não vão resolver nada. Por que fazer o fechamento e impedir a circulação entre meia noite e cinco da manhã? Nesse horário já não há gente na rua. E quem foi festejar, se aglomerar, beber e fazer tudo de errado, já fez. Essa é uma medida pouco eficaz.
Estou totalmente de acordo com o professor Miguel Nicolelis, que em entrevistas recentes disse que o Brasil precisaria de um lockdown de duas semanas bastante rígido para interceptar as cadeias de transmissão do coronavírus.
O Brasil nunca fez um lockdown adequado. Nunca conseguimos alcançar a taxa de 60% da população em casa, que seria um número desejável. Quem mais chegou perto disso foi São Paulo, com 58% de distanciamento social por momentos muito breves. Aqui no Rio de Janeiro não conseguimos.
E agora há esse descompasso entre o que a ciência diz e o cansaço generalizado de uma pandemia longa, com a economia tão machucada. Mas as pessoas precisam entender que não tem jeito. Se não tomarmos cuidado por algum tempo e não começarmos uma vacinação em massa, a situação só vai piorar.
Precisamos vacinar 70% de nossa população até o meio do ano. Não é pra setembro. É para junho. Caso contrário, vamos propiciar as condições para o aparecimento de outras variantes. Também precisamos de um investimento pesado em vigilância genômica, para que possamos ter certeza que as vacinas produzidas pelos dois institutos públicos brasileiros, o Butantan e a Fiocruz, são realmente efetivas contra as novas variantes.
BBC News Brasil – Falando em vacinação, o Brasil tem um sistema público muito bem estabelecido e uma capacidade histórica de imunizar 80 milhões de pessoas em poucos meses. Mas quando analisamos a campanha contra a covid-19, o ritmo está muito lento. Quais são os gargalos que não permitem a gente acelerar esse processo?
Dalcolmo – O primeiro deles é óbvio: não tem vacina. Se nós tivéssemos as milhões de doses que precisamos, bastava ter agilidade. E o nosso velho, tradicional e competente Programa Nacional de Imunizações tem uma enorme experiência em vacinar, quando é somado com essa capilaridade espetacular do Sistema Único de Saúde, o SUS. Seríamos capazes sim.
Mas a pandemia de covid-19 nos colocou numa situação nova, e isso pode indicar um novo tipo de voluntariado de qualidade ao nosso país. O que estamos vivendo agora é uma possível parceria com setores privados. Eu estive em São Paulo para conversar com a empresária Luiza Trajano para discutir esse assunto.
Que fique claro: eu sou completamente contrária à compra de vacinas pela iniciativa privada e já me manifestei sobre isso inúmeras vezes. Permitir isso no Brasil é indecente e imoral.
O que precisamos é ter uma vacina comprada pelo Governo Federal, que pode contar com a ajuda de empresas e empresários em questões como logística e transporte. Imagina uma prefeitura pequena, que não tem uma capacidade de organização grande. A iniciativa privada pode prover avião, barco, caminhão refrigerado, geladeira, freezer.
O que nós precisamos agora é ter muita vacina e uma capacidade logística enorme para imunizar muita gente em pouco tempo. Só a partir daí vamos fazer a economia voltar a funcionar com um pouco mais de liberdade. Isso também permitirá que as escolas reabram em sua capacidade total. E, inclusive, eu defendo que os trabalhadores da área de educação sejam vacinados com prioridade após protegermos os idosos e os profissionais da saúde.
BBC News Brasil – Nós já temos duas vacinas em uso no país, a CoronaVac (Sinovac/Instituto Butantan) e a CoviShield (AstraZeneca/Universidade de Oxford/Fiocruz). Além delas, vemos conversas sobre os imunizantes de Pfizer/BioNTech, Johnson & Johnson, a Sputnik V… É hora de diversificar nosso portfólio?
Dalcolmo – Nós estamos atrasados nisso. Poderíamos ter negociado com Pfizer e Johnson & Johnson desde que eles iniciaram os estudos de fase 3 aqui no Brasil, no segundo semestre de 2020. A Sputnik V parece ser boa, mas ainda carece de registro na Anvisa, que é nossa agência reguladora. … – Veja mais em https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/bbc/2021/03/02/covid-19-teremos-marco-mais-triste-de-nossas-vidas-preve-pneumologista-da-fiocruz.htm?cmpid=copiaecola
Mas quando alguém me pergunta qual vacina eu tomaria, eu sempre respondo: qualquer uma, desde que tenha registro na Anvisa. O que eu nunca tomaria é uma vacina que não passou por esse crivo de grande qualidade técnica que temos em nosso país.
A verdade é que nós perdemos um tempo precioso e já podíamos ter a vacina da Pfizer por aqui. Hoje estamos implorando para negociar alguns poucos milhões que estão disponíveis.
Vale lembrar que não tem vacina para todo mundo. Se pensarmos que dez países já compraram 75% da produção mundial de vacina deste ano, isso de novo nos revela a enorme desigualdade em que vivemos. Só o Canadá garantiu cinco doses para cada habitante. E isso não é bom nem ruim, não estou julgando. Pelo menos eles farão uma coisa correta, que é doar o excedente para os países que não tem condições por meio do mecanismo da Covax Facility.
BBC News Brasil – Diante de todo o cenário que a senhora descreveu e analisou, quais são as mais importantes recomendações que todos nós devemos seguir pelas próximas semanas?
Dalcolmo – As pessoas têm que entender que tudo isso já era esperado, por mais que não desejássemos que acontecesse. Quantas vezes eu disse coisas nessa pandemia e gostaria de estar errada… Parece que estamos numa crônica de morte anunciada, como aquelas escritas por Gabriel García Márquez em seus livros.
Mais uma vez, faço um apelo para que todo mundo entenda que estamos num momento muito grave, muito mais sério do que o primeiro pico. Esse número de mortes é absolutamente intolerável.
O que temos de fazer é proteger a nós mesmos, nossas famílias, nossos colegas de trabalho. Sei que estamos cansados da pandemia. Mas elas são assim mesmo e levam tempo.
Essa é a primeira pandemia de uma geração mais jovem, mas nós já vivemos outras no passado. Quando enfrentamos a H1N1 em 2009, por exemplo, estávamos mais preparados. O Brasil tinha 70 milhões de doses de vacina compradas, estocadas, com seringa, agulha, tudo. Não é o que está acontecendo agora…
É hora de todos colaborarem, fazerem sua parte e terem consciência cívica. Não adianta ser anárquico e desafiar uma ordem biológica que não é favorável a nós. Ou nos comportamos agora ou colaboraremos com a piora dessas estatísticas terríveis, que mais parecem filmes de terror.
Fonte: Bem Estar/G1 e UOL