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Em entrevista ao ‘Estadão’, atacante do Everton e da seleção de Tite assume papel de falar em nome dos mais necessitados, da força das redes e da obrigação de o Brasil investir em educação
Um dos jogadores que se firmaram na seleção de Tite nos último anos, o atacante Richarlison também consegue se destacar em outras frentes na carreira. No Everton, seus gols ajudam muito o time a se posicionar no Campeonato Inglês. Mas é fora de campo, que o grandalhão 1,84m e natural de Nova Venécia, Espírito Santo, mexe com uma legião de seguidores das redes e torcedores pelo seu sucesso. Ele tem levantado algumas bandeiras incomuns entre seus colegas do futebol, mais animados com games e fones no ouvido, crescidos em bolhas e por agentes que repetem o tempo todo que jogador deve pensar apenas em jogar futebol. Richarlison quebra essa máxima, pede mais educação e comida na mesa do brasileiro e cobra governantes em entrevista dada com exclusividade ao Estadão. Veja a entrevista completa:
Você cativou um público de forma espontânea nas redes. Peguei umas métricas de comentários em jogos do Everton e da seleção no Twitter e, salvo engano, em duas oportunidades você não esteve entre os cinco mais comentados durante o período. Como é isso para você? Te balança? Dá vontade de pegar o celular e ficar rindo das mensagens que te mandam?
Eu gosto muito de interagir com os torcedores e com os fãs. Quando era mais novo, nunca tive a oportunidade de ver um ídolo meu de perto, muito menos trocar ideia com ele. Então, tento fazer um pouquinho disso para quem gosta de mim e acompanha o meu trabalho, como uma forma de retribuir. As redes sociais ajudam muito nessa aproximação.
Nesse sentido, ainda teve o número de celular vazado pelo Neymar… Isso te complicou muito? Já conseguiu trocar e voltar para o grupo dos amigos ou ele ainda está te devendo essa?
Só naquele dia, recebi mais de 50 mil mensagens. Tive de desinstalar o WhatsApp e trocar de número, porque meu celular estava travando e não conseguia fazer mais nada (risos). Mas ele acabou me ajudando, estava mesmo precisando trocar de número fazia tempo.
Teve troco online com o Neymar?
A Twitch derrubou a conta dele por uma semana por causa daquilo (risos). Ele ficou me zoando na seleção, dizendo que a culpa era minha, mas ele que deu mole (risos). Não teve troco, ele mostrou o número sem querer, foi tudo na brincadeira.
Aliás, online, quem é camisa 10 e mete a faixa? Quem merece um banco ou sequer deveria ser convocado para sua seleção?
Meu grande rival no PubG é o Jemerson, zagueiro do Corinthians, mas eu sempre ganho dele. Não tem mais graça (risos). Mas ele é bom, joga bem. Tem muita gente que joga comigo, mas vou mais pela resenha. Na competição mesmo, tem a molecada do time que apoio, o R7, que é fera. Eles são 10 e metem a faixa (risos).
Voltando às redes, um dos motivos que cativaram essa relação com o público foi seu envolvimento em causas sociais. Muitos diziam que o jogador tem um perfil alienado e ver alguém ser engajado de forma tão espontânea aumentou seu vínculo com as pessoas, que se sente representadas. Como você vê isso?
Muita gente acha que é falta de vontade dos caras de se posicionar, mas não é bem assim. De onde a gente vem, ninguém nunca quis saber o que a gente tinha para falar. E quando o nosso trabalho faz com que as nossas vozes sejam ouvidas, muitos jogadores já não querem mais esse desgaste. Cada um tem suas feridas, sabe o tanto que ralou para chegar aonde chegou e as pessoas precisam entender isso. É difícil você encontrar um jogador que não ajuda sua comunidade ou não faz um trabalho social. Ajudam o quanto podem. É claro que seria ótimo se todos quisessem também falar e cobrar atitudes de quem está no comando e de quem deveria fazer alguma coisa para mudar a realidade do Brasil, porque é muito importante e o alcance dos jogadores é muito grande, mas isso é uma coisa pessoal de cada um.
Você tem dimensão que, mais do que um ídolo em campo pelo, é uma voz para milhões de brasileiros, que sentem em você um grande espelho? Como espera que sua voz chegue a eles?
Espero que minha voz chegue cada vez mais alta. Se não for para fazer barulho e ajudar, eu nem vou (risos). Vou continuar do lado de quem mais precisa, porque já estive lá e minha comunidade tinha muitas necessidades. Sei que isso cobra um preço do jogador, qualquer coisa errada que fizer vai ter uma repercussão maior e algumas pessoas vão cair matando, mas é um preço que eu estou disposto a pagar.
Quando tivemos o #BlackLivesMatter, você foi categórico ao dizer que “poderia ser comigo”. Já passou por situação semelhante? Se sim, como foi e onde encontrou forças para superá-la?
Eu morava em uma comunidade pobre, diversos amigos que tinha quando era criança foram por um caminho ruim. Muitos foram presos, outros morreram e outros perderam o rumo mesmo. Sou grato às pessoas que me ajudaram, porque sei que poderia ter sido vítima de algo ruim, mesmo sempre indo pelo caminho certo. Já fui confundido com um traficante quando estava voltando do futebol com meus amigos (no Espírito Santo), já vi muita coisa errada acontecer na minha frente. Tudo que podia fazer era me afastar daquilo e foi o que eu fiz. Sempre digo que o futebol me salvou, outros não tiveram a mesma sorte que tive. E não é só nessa questão de violência física que a coisa é complicada, é no tratamento também. As pessoas te olham diferente, trocam de calçada para não passar perto de você com medo de serem roubadas ou de você pedir alguma coisa. Vejo algumas pessoas dizendo que não existe racismo no Brasil, mas é só você analisar qual a maior parcela da população pobre do País para notar que existe e é muito grande.
Outro caso marcante foi sua participação no caso da Mari Ferrer (influenciadora que moveu processo de estupro em Santa Catarina). Acha que com pessoas como você dando luz ao que temos de mais obscuro, aos poucos podemos discutir mais alguns temas e conseguir mais justiça social?
Eu espero que sim, porque é uma questão de humanidade e muito óbvio. Sobre o caso da Mari Ferrer… Eu tenho irmã, mãe, primas, avó, amigas… Minha família é cheia de mulheres, cara. Eu ficaria maluco se acontecesse algo assim com elas e nem consigo imaginar como elas ficariam. Nós, homens, precisamos parar de minimizar as coisas que acontecem com as mulheres, parar de culpar quem é vítima. Uma menina que é estuprada ou sofre assédio nunca mais vai esquecer. Isso é muito triste. E só vai mudar quando quem fizer esse tipo de coisa for para a cadeia e ficar por lá um bom tempo, independentemente de ser pobre ou rico. Sobre Manaus, foi horrível ver aquilo acontecendo. Ver as pessoas na fila para tentar buscar oxigênio para seus familiares. Como disseram: faltou ar no pulmão do mundo. Eu acho que a gente não pode se acomodar com essas coisas, passar a tratar absurdos como coisa normal.
O que achou da coluna do Martín Fernandez, do SporTV, “Richarlison para Presidente”, em que destaca seu papel social de forma tão espontânea?
Eu fiquei muito feliz quando li, mas se tem uma coisa que não gostaria de ser é presidente da República (risos). É muito legal ver que posso ser espelho e que tantas pessoas ouvem o que falo. Eu acho que isso traz uma responsabilidade enorme e quero continuar ajudando, mostrando um caminho paras pessoas, especialmente para as crianças.
Na cabeça do Richarlison, o que precisamos mudar para ter um mundo em que sua família e entes queridos vivessem em paz? E em que avançamos?
Eu acho que temos de olhar com carinho para quem precisa mais. O Brasil é um país que produz e exporta comida para o mundo inteiro, mas tem gente passando fome. Tem crianças que não conseguem ir para a escola porque precisam trabalhar ou ir pedir dinheiro no semáforo, porque os pais não conseguem emprego nem sustentar a família. E algumas dessas crianças escolhem o caminho errado, porque é teoricamente mais fácil. Penso que um país sem saúde e educação para todos – e nisso entra o esporte também, que é muito importante, porque ensina coisas boas e faz bem para a saúde – e sem comida na mesa não vai para frente. Acho que todo mundo deveria estar buscando por isso, não pelas besteiras que ficam brigando e discutindo o dia inteiro.
Quando a seleção voltou a jogar, você veio para o Brasil, com pouco tempo de trabalho, sem três peças titulares importantes (Neymar, Casemiro e Coutinho) e contra uma Venezuela fechada. Como foi aquele jogo?
Estava mais descansado que a maioria, ainda não tinha perdido ritmo de jogo. Eles são jogadores que fazem muita falta, claro, são fundamentais para a nossa equipe. Mas acho que a maior dificuldade foi que pegamos um adversário com nove jogadores dentro da sua própria área e estava difícil achar espaços. Foi um jogo difícil e que conseguimos uma vitória importante nas Eliminatórias.
Na partida seguinte, um Uruguai, no Centenário. Ainda que sem público, a aura de jogar ali é diferente mesmo com experiência de jogar em grandes estádios do mundo?
É um estádio histórico, todo mundo tem o sonho de jogar ali um dia, e tive esse privilégio pela segunda vez na carreira. É o Maracanã deles. Uma pena que o estádio estava sem torcida. Mesmo quando são adversários, é legal de se ver a festa e o barulho que os torcedores fazem, ainda mais lá que são tão fanáticos por futebol. Motiva até o rival.
Continuando no assunto seleção, sabemos que seu objetivo (e de quem está no radar do Tite) está no Catar, em 2022. Como é para um atleta mostrar serviço em apenas uma semana? Como vem sendo para você esse ciclo até o Mundial?
Na verdade, vejo isso um pouco diferente. Eu acho que temos de mostrar serviço todos os dias. O Tite conversa com os nossos treinadores nos clubes e sabe exatamente como estamos rendendo não apenas nos jogos. Isso faz com que precise estar bem também no dia a dia. Eu estou dando a vida para poder estar lá no Catar em 2022, quero mais do que tudo. Para isso, sei que preciso manter meu nível aqui no Everton e continuar mostrando serviço quando estiver na seleção, mesmo com tão pouco tempo. Qualquer vacilo, posso perder espaço, porque temos muitos atacantes de qualidade no radar.
Sente que a pandemia pode impactar em algo, já que terá calendário mais apertado, que poderá afetar até mesmo um período de convivência, como a Copa América, quando teve mais tempo de entender melhor as ideias do Tite e o jogo dos seus companheiros?
A coisa ainda está muito doida, então a gente não sabe como tudo será. Espero que até lá tudo esteja mais calmo e controlado, que a vacina comece a chegar para todo mundo, enfim. Apesar disso, acredito que a gente precisa trabalhar forte e assimilar o que o professor Tite espera da gente com o tempo que tivermos para treinar e jogar.
E do lado bom? Como sente que a Copa América, em tiro curto, pode beneficiar nessa preparação rumo ao Catar?
Acho que a única coisa que podemos tirar de positivo dessa falta de tempo é que precisaremos lidar com a pressão o tempo todo. Um campeonato de tiro curto não dá margem para errarmos. Além disso, teremos a chance de encontrar alguns dos nossos grandes rivais no continente e que poderão cruzar o nosso caminho na Copa do Mundo. Então, é uma forma de entender e testar o nosso potencial.
Muitos elogiam o trabalho do América-MG, onde você já esteve, que se estruturou de forma que sempre está figurando bem nos torneios e vem conseguindo resultados significativos desde quando você estava lá. Você via essa estruturação no seu período?
Acho que foi tudo muito bem feito no América. Ele se fortaleceu primeiro lá dentro, dando uma boa condição de trabalho para os jogadores e treinadores, para poderem se desenvolver. Na base também, sempre tem uma molecada muito boa, e isso ajuda. Espero que possa permanecer na Série A e chegar cada vez mais alto. É um clube que merece os frutos que vem colhendo.
Se você pudesse mandar um recado aos seguidores, o que falaria?
Queria mandar um abraço ao povo brasileiro. Pedir que tenham paciência, que fiquem em casa quando possível; quando sair, usem máscara, porque a pandemia está complicando de novo. É hora de acreditar em quem estuda e vive para nos ajudar a vencer essas dificuldades. Fiquem bem!
Fonte: Estadão