Quando minha filha nasceu, em 2017, me mandaram embora e me desesperei. Decidi voltar a trabalhar com moto, mas quando fui ver não tinha mais trampo de moto, o que tinha era aplicativo. Logo descobri que era a maior roubada. Bem no começo, me colocaram para entregar droga sem eu saber. Ali já me revoltei. Fiz um vídeo sobre isso na época, tentei divulgar, mas ninguém deu atenção e a história morreu.
Continuei trabalhando, só que os bloqueios aconteciam normalmente. Eu ia lá me humilhar na sede da Uber, pedindo desculpa sem estar errado, e me devolviam o cadastro. No dia 21 de março, meu aniversário, eu tava numa neurose, porque queria descansar, ficar com a minha família, só que já era a terceira [conta de] água atrasada, a segunda luz atrasada, e a geladeira vazia.
Saí bravo de casa. Quando deu 23h, meu pneu furou e eu estava com o pedido de um cliente. Liguei para a Uber e informei para mandarem outro entregador, porque eu não ia dar conta. A Uber disse que não tinha entregador perto e que eu podia cancelar o pedido. Eu disse que, se fizesse isso, me bloqueariam, porque isso já tinha acontecido outras vezes. Garantiram que não.
No outro dia arrumei o pneu e, na hora que liguei o aplicativo para ir trabalhar, eu estava bloqueado. Falei, ‘Chega, mano, vou denunciar os cara.’ Na minha inocência de achar que o mundo é simples assim, você tem uma denúncia e alguém vai te ouvir.
Na época eu tinha uns 300 seguidores no Instagram e postei que precisava do contato de um jornalista. Dois me deram atenção: um do Intercept e os Jornalistas Livres. Pediram pra eu fazer um vídeo e mandar. Viralizou. Eu falava: ‘Você sabe o quanto é difícil carregar comida nas costas de barriga vazia?’. Hoje sei que essa frase atrai gente estranha, que acha que a ajuda que a gente precisa é um assistencialismo barato.
Depois apareci na revista Exame. Como é uma revista que empresário lê mais, depois disso nunca mais recebi pedido pelo iFood nem pelo Rappi. Isso a gente chama de bloqueio branco —eles não te bloqueiam oficialmente, para não dar problema jurídico, mas você para de receber pedido. Falei, ‘já era, mano, vou ter que cair mais pra dentro da luta, gritar mais alto.’ Nessa época eu parava de bolsão em bolsão tentando falar com os motoboys. Os caras conheciam minha cara porque eu tinha aparecido na Record e falavam, ‘Ah, Galo, o aplicativo não tá bom? Desliga e vai pra Cuba.’
Me toquei que os caras não estavam se sentindo trabalhadores, estavam se sentindo empreendedores, cheio de dívida pra pagar e achando que faz seu horário. Se você é trabalhador igual eu e sua mente foi manipulada a tal ponto que você não se enxerga mais como trabalhador, eu não tenho problema com você, tenho problema com quem fez isso na sua cabeça.
Fui atrás dos irmãozinho da bicicleta com aquele meu discurso e, quando terminei, ninguém me mandou pra Cuba. Todo mundo falou: “É isso aí.” Aí comecei a trocar ideia mais com as bike. Teve um protesto na Paulista que só tinha bicicleta, e eu tava lá.
Vi que a polícia ia quebrar todo mundo e tomei a frente do protesto. Eram dois dias antes do protesto antirracista e antifascista no Largo da Batata. Falei, ‘Ah, mano, nós é os entregador antifascista’, foi o nome que veio na minha cabeça, talvez pelo ato. Alguém filmou e no outro dia uns quatro, cinco jornalistas começaram a me ligar, perguntando se os Entregadores Antifascistas iam pro ato.
Eu não sabia se a ideia ia funcionar. Quando fui ver, tinha 15 [entregadores no ato]. O repórter veio, filmou, aí saiu aquele vídeo. Eu falei: “Nós não é empreendedor de porra nenhuma, nós é força de trabalho nessa porra.” E aí viralizou mesmo, mas com ódio de classe, ódio da situação, e, naquele momento, por uma fração de segundo, o mundo, que tava de ponta-cabeça, voltou ao normal. Hoje os Entregadores Antifascistas estão em 11 estados.
O jornalista é classe trabalhadora também, e acho que os jornais acabaram me ouvindo por causa disso. Não tenho problema com jornalista, tenho problema com como o jornalismo funciona. Acho que o jornalista quer dar voz para quem precisa ter voz, mas vai ser difícil dentro da estrutura do jornal. Você acha que o William Bonner vai me chamar no Jornal Nacional pra falar mal do iFood? O iFood deu R$ 1 milhão pros caras no comercial.
De um tempo pra cá, o capitalismo começou a entender que ser racista era péssimo pros negócios, que preto vende pra caramba, e começou a ter esse discurso mais inclusivo. Acredito que tem lugares que não é pra ser ocupado, é pra ser destruído, não tinha que existir dessa forma. Tinha que desconstruir e construir de novo, mais justo, mais igual.”
Fonte: Folha de S. Paulo