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Nossa bandeira sempre foi vermelha – A história de nosso país está em frangalhos. Não me refiro ao estudo da história brasileira, mas sim ao lastimável estado em que se encontram os prédios históricos e os museus de nosso país. Basta lembrar o caso do incêndio no Museu Nacional ocorrido no dia 2 de setembro de 2018, em pleno governo Temer. A destruição de nossa história não começou com a eleição de Bolsonaro, o mais deletério da lista de presidentes abjetos brasileiros, embora ela tenha se exacerbado naquele governo avesso à inteligência, eufemismo que cabe também ao apoio popular recebido pelo ex-presidente, notadamente àqueles que, embrulhados na bandeira do Brasil, gritavam e ainda gritam: “Nossa bandeira jamais será vermelha”.
Opinião: “Brasil no lado errado da luta do povo haitiano”
Não sabem eles que “brasil” significa originalmente um conjunto de brasas vermelhas? Ou algo vermelho como brasas? Que foi esse o termo escolhido para a cor da tintura vermelha extraída do pau-brasil, primeiro produto exportado por nosso país e cuja importância era grande a ponto de lhe dar o nome? E quantos deles sabem que nossa bandeira verde amarela foi roubada? Corria o ano de 2010 quando, depois de forte temporal, o teto da Igreja Positivista do Brasil (Templo da Humanidade), localizada na rua Benjamin Constant, no bairro da Glória, Rio de Janeiro, desabou. No dia 27 de abril de 2010, pelo teto desabado, entrou um ladrão e roubou uma tela a óleo do positivista Décio Villares retratando a bandeira nacional, primeiro registro da atual bandeira do Brasil. Sob o teto desabado do Templo da Humanidade, abrigavam-se outros tesouros de nossa cultura: livros raríssimos, pinturas, documentos, estátuas e objetos históricos.
“Mas a bandeira do meu Partido
vem entrelaçada com outra bandeira
a mais bela, a primeira verde-amarela,
a bandeira brasileira.”
(Jorge Mautner – A bandeira do meu Partido)
O prédio, um dos poucos no Brasil tombados por todas as esferas de preservação patrimonial (federal, estadual e municipal), era considerado um tesouro histórico e arquitetônico. O que não impediu o teto de desabar. Na fachada ainda se lê o dístico de Augusto Comte: “O Amor por princípio e a ordem por base. O progresso por fim”, uma das frases que inspirariam o texto de nossa bandeira nacional. Para Comte, assim como para seu principal professor Saint-Simon, o objetivo maior da filosofia era a transformação da sociedade visando à melhora objetiva da condição de vida dos trabalhadores. Desde muito jovem até sua maturidade intelectual, essa foi uma constante de seu pensamento. Os principais dirigentes positivistas de nosso país recolheram sua lição.
Restaram dois papéis milimetrados onde nossa bandeira foi rascunhada com precisão por Teixeira Mendes. Esses protótipos registram a criação feita por Mendes da bandeira do Brasil. Tanto os papéis como a pintura datam de 1889, logo após a Proclamação da República, cujos principais organizadores, foram esses mesmos positivistas, e apenas um ano depois da abolição da escravidão, objetivo fundamental dos positivistas brasileiros no século XIX. Qualquer membro da Igreja Positivista que tivesse qualquer relação com a escravidão ou mesmo que fizesse média com ela era sumariamente expulso. De mesmo modo, quando o movimento positivista internacional, sediado em Paris, tentou contemporizar com membros donos de escravos, os positivistas brasileiros dele se retiraram para nunca mais voltar e publicaram todos os textos de Comte em que ele se definia como frontalmente oposto à escravidão. A dedicatória do livro homenageava o General Toussaint Louverture, herói da libertação dos escravos negros do Haiti.
Mesmo positivistas que não pertenciam à Igreja, como Júlio de Castilhos, se definiram pela abolição radical (imediata, geral e sem ressarcimento dos senhores de escravos). Em 1884, quatros anos antes da abolição, ele havia defendido o fim da escravidão e seus correligionários do Partido Republicano do Rio Grande do Sul (P.R.R.) libertaram cerca de 40.000 escravos. Dentre os estancieiros castilhistas que alforriaram seus escravos, estava Manoel Vargas, pai de Getúlio. Para ele, se alguém deveria receber algo pelo fim da escravidão, deveriam ser os escravos libertos, únicas vítimas do odioso e brutal sistema de exploração montado em nosso país.
Abolida a escravidão, os positivistas puseram-se à frente da luta pela República. Eles elaboraram a bandeira do Brasil republicano, nela inscrevendo o lema “ordem e progresso”, comumente relacionado ao positivismo. O que é curioso é que normalmente quem faz esta ligação repete que Teixeira Mendes, vice-diretor do Apostolado, teria tirado o “amor” da bandeira dada a frase mais conhecida do filósofo de Montepellier. Acontece que a frase indicada por Comte para as bandeiras políticas era apenas “Ordem e progresso”, exatamente do jeito que está na bandeira brasileira. A frase que começa com “O amor por princípio” era o lema religioso do positivismo, não o político. Por isto está presente na fachada do Templo da Humanidade mas não na bandeira. O criador de nossa bandeira não se esqueceu do amor, os críticos que se esqueceram de estudar antes de criticar.
Confesso que este é um pequeno erro, que não muda muito na prática política contemporânea. Mas existe um erro maior que também é recorrente. Trata-se da falsificação de que o verde e o amarelo de nossa bandeira seriam homenagens as cores dos Habsburgos ou dos Bragança. As cores da bandeira imperial brasileira talvez evocassem aquelas casas reais, mas os republicanos convictos que desenharam a atual bandeira do Brasil seguramente não fizeram homenagens a monarcas. Como já frisamos, eles são alguns dos principais responsáveis pelo fim da monarquia no Brasil. Mas mais que isso, existia, seguindo as recomendações de Comte para a fabricação da bandeira republicana positivista, uma vontade de se homenagear as bandeiras históricas de cada país de modo a não se apagar o passado. Segundo Comte, em cada nação, a nova bandeira deveria honrar a bandeira antiga. Por mais que ele sugerisse um método para que as nações desenvolvam as suas bandeiras positivistas ele reforça que elas devem “respeitar escrupulosamente até as menores nacionalidades” mantendo seus emblemas próprios e símbolos comuns. A bandeira nacional deveria unir num mesmo símbolo o passado, o presente e o futuro da nação.
E mais, ainda nas recomendações de Comte, a frase “Ordem e Progresso” deveria estar escrita a frente de “um fundo verde, cor natural da esperança apropriada aos emblemas do porvir”. Segundo os conselhos de Comte que motivaram o epígono Teixeira Mendes, a cor verde pode ter duas motivações que não se excluem: A primeira é a ideia de “honrar as bandeiras passadas”, ou seja, não se fazer tábula rasa do passado, a outra é que segundo Comte o verde seria a cor da esperança no futuro.
Por maior que tenha sido a importância dos positivistas na Proclamação da República, eles não dispunham de massa crítica para fazer prevalecer suas ideias no processo constituinte. Durante a Assembleia Nacional Constituinte de 1891 suas posições foram rapidamente suplantadas pelos liberais. Entre elas, um texto para um projeto de legislação trabalhista enviado por Teixeira Mendes, o mesmo que em 1889 criara nossa bandeira. Essa avançada proposta de direitos trabalhistas foi ignorada e descartada na Assembleia. Um projeto revolucionário que poderia ter feito do Brasil o primeiro país no mundo a ter em sua constituição a promulgação de direitos trabalhistas. Dentre os muitos trechos importantes desse projeto de lei de Teixeira Mendes selecionamos essa pequena amostra:
(…) a elevação do caráter brasileiro consiste essencialmente na elevação do proletariado, porque ele constitui a quase totalidade da nação: é ele que forma propriamente o povo; é dele que saem e é para ele que revertem todas as outras classes sociais. Como, pois, conceber a regeneração de nossa Pátria mantendo a família proletária no grau de abatimento em que até hoje ela se acha em todo mundo? (…)
Instituir o salário não mais no ponto de vista servil e industrial que até hoje domina, mas no ponto de vista civil e social, que é o único compatível com a dignidade humana- tal deve ser o objetivo de todos os patriotas. (…) O salário não é a paga do trabalho efetuado, porque o trabalho humano não comporta equivalente em dinheiro(…) A civilização moderna não pode manter em relação à propriedade os princípios que dominavam na sociedade antiga. O bem geral é a lei suprema das nações, e todas as instituições humanas devem basear-se na moral e na razão(…)*2
Não enfadaremos o leitor com a enorme quantidade de leis trabalhistas propostas por Teixeira Mendes nesse projeto. Elas eram radicais, especialmente no contexto em que a imensa maioria ainda considerava o trabalho como “coisa de escravo”. Basta dizer que ele defendia que um trabalhador não pudesse trabalhar mais que sete horas por dia, que deveria ter direito à férias, direito à licença de saúde remunerada, que os empregadores só poderiam demitir por justa causa, que qualquer trabalhador com mais de 42 anos começasse a receber uma aposentadoria, que qualquer um que se ferisse em trabalho seria aposentado com 100% do ordenado etc.
Essas leis antecedem em ao menos 40 anos as principais leis trabalhistas brasileiras. Aquelas que começaram a surgir depois da Revolução de 30, promulgadas por outro positivista, Getúlio Vargas no primeiro Ministério do Trabalho do Brasil, cujo ministro, Lindolfo Collor, também era positivista.
Se no Congresso Constituinte Federal os positivistas foram voto vencido, na constituição gaúcha de 1891, totalmente elaborada por Júlio de Castilhos, aparecem os primeiros esforços de elaborar direitos para os trabalhadores no Brasil (uma das primeiras tentativas de instaurar direitos trabalhistas no mundo). No entanto, a Constituição Estadual era limitada pela Constituição Federal, obrigando Júlio de Castilhos a utilizar de métodos infraconstitucionais para driblar as restrições impostas pelo texto federal. Um dos métodos empregados foi o de equiparar os direitos dos funcionários públicos aos dos demais trabalhadores, conforme se promulgavam direitos para os funcionários do Estado eles eram imediatamente estendidos ao proletariado. Outro método desenvolvido foi o de promulgar direitos para grandes obras públicas específicas. Por exemplo, quando o Estado gaúcho ia construir uma barragem em um rio, promulgava para os trabalhadores dessa empreitada direitos trabalhistas específicos.
Esses eram pontos fundamentais dos políticos positivistas que criaram a bandeira brasileira: Trabalhismo, abolicionismo ferrenho e defesa intransigente da República.
Nossa bandeira foi roubada. Mas não se trata agora daquele furto ocorrido em 2010 e denunciado para a Polícia Militar, para a Polícia Federal e para a INTERPOL, que não obtiveram nenhum sucesso em recuperar a bandeira original do Brasil. Trata-se agora de um roubo metafórico que em alguns aspectos é ainda mais prejudicial que o descaso que temos nesse país com nossa própria história. Nossa bandeira foi raptada por movimentos neofascistas que se escondem atrás dos símbolos da CBF, de discurso aparentemente patriota, mas com absoluto desconhecimento da história de nossa bandeira e República. Ao menos desde que as manifestações legítimas de 2013 foram atropeladas pela extrema direita, um discurso que opunha as bandeiras vermelhas dos militantes socialistas à nossa bandeira nacional se disseminou e parece vencedor. Aos berros de “Nossa bandeira jamais será vermelha”, marcharam por nossas ruas hordas imbecilizadas que certamente desconhecem Teixeira Mendes, Miguel Lemos, Júlio de Castilhos, Décio Villares e tantos outros heróis fundamentais para a criação da República do Brasil e de nossa bandeira.
Longe das patriotadas vulgares e estéreis, cumpre reconhecer na história de nosso país o valor desses lutadores por melhores condições de vida para o povo. Identificados com o que os neofascistas chamam de política “vermelha”, foram eles que, literalmente, construíram nossa bandeira. Em pleno século XXI, estamos não só longe dos ideais desses políticos e intelectuais positivistas formulados no final do século XIX, como também em franco retrocesso. Se continua desconhecido o paradeiro de nossa primeira bandeira republicana, devemos, ao menos, defender seu significado histórico, indevidamente apropriado pela extrema direita. Essa bandeira é nossa: verde, amarela, branca, azul, mas também vermelha, cor da madeira que deu o nome ao país e das ideias avançadas dos que lutaram pioneiramente pelos direitos dos trabalhadores.
Dedicado ao professor Alfredo Bosi. Não esqueceremos, nem de suas lições, nem de sua gentileza.
Por Francisco Quartim de Moraes, Doutor em História Econômica pela FFLCH-USP e autor do livro “1932: A história invertida”
*Uma primeira versão deste artigo, com algumas alterações, foi originalmente publicada no boletim do GMARX- Maria Antônia
*2 -Texto da proposta enviada por Teixeira Mendes ao Governo Provisório em 1890 apud LINS, Ivan. História do Positivismo no Brasil. Companhia Editora Nacional, São Paulo,1964. P. 360-367
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Este texto é opinativo e não reflete, necessariamente, a opinião do site Brasil Independente