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Carta aos banqueiros – Moro numa cidade que respira dinheiro. Limpo e sujo. Muito sujo. Aqui em Genebra, esbarramos com vocês, banqueiros, na escola, no parque, na pizzaria e em tantos outros lugares.
Não aceito e nem gosto de generalizações. Mas há um aspecto que nunca consegui entender: afinal, vocês são ou não liberais?
Pergunto isso por conta dos eventos dos últimos dias, envolvendo o Credit Suisse, mas também outros bancos nas economias ditas “maduras”.
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Nos EUA, na semana passada, o Federal Reserve indicou que fez empréstimos de US$ 300 bilhões para bancos com problema de caixa. Só aqui na Suíça, a instituição financeira que vivia dias difíceis recebeu um socorro de US$ 50 bilhões, o que seria o suficiente para a ONU sair ao resgate de 230 milhões de pessoas em crises humanitárias pelo mundo durante um ano.
Claro, não há como deixar um banco dessa dimensão quebrar. São bancos classificados como “grande demais para quebrar”. Ou seja, se forem à falência, é a economia inteira que sucumbe.
Mas me pergunto: não são vocês aqueles que votam em políticos que defendem o estado mínimo, pouca regulação, redução de impostos para grandes fortunas, privatização e abertura de mercados?
Não são vocês que insistem na tese da meritocracia, como uma religião que abandona quem não serve ao sistema?
Eu também gostaria de ser classificado como “grande demais para quebrar”. Milhões de pessoas também gostariam de viver uma vida na qual poderiam ser generosamente resgatadas se escorregassem na administração de seu destino. Ou aqueles que sequer sonham em ter um destino e optam por sonhar em dar comida a seus filhos.
Mas, para eles, os mercados ficam tensos se há alguma sugestão de mais dinheiro.
Talvez vocês não se lembrem. Mas da última vez em que o sistema financeiro derreteu em 2008, governos vieram ao socorro de vocês. Para isso, usaram recursos de aposentados, da classe média e o sonho de famílias inteiras.
Para arcar com a dívida de salvar em parte seus bancos, governos fizeram verdadeiras políticas de austeridade que mataram sonhos e pessoas.
Vocês certamente não são os únicos responsáveis. Autoridades viveram empurrando as dívidas para o ano seguinte, certos de que nada aconteceria. Mas aconteceu.
Se a amnésia é intensa no meio financeiro, vou aqui tentar refrescar a memória. Naquele momento da crise, percorri Grécia, Itália, Portugal a Espanha para descobrir o impacto da austeridade.
Vi como, em Atenas, faltou remédio. Em Canárias, salas de cirurgias só funcionaram pelas manhãs e, na Catalunha, médicos foram sendo orientados a não pedir exames de pacientes. Em Badalona, enfermeiras revelaram que foram instruídas a dar altas o mais rápido possível aos pacientes. Em Madri, o programa de ajuda a dependentes tóxicos sofreu um corte de orçamento de 35%. Paterna eliminou o serviço de ambulância 24 horas.
No governo de Castilla-La Mancha, a ordem foi a de cortar pensões de viúvas. Já em Girona, motoristas estavam enfrentando uma ameaça: os semáforos foram desligados das 22 horas às 6 da manhã para economizar gastos.
A Comunidade Valenciana cortou verbas para o ensino de música e 62 conservatórios foram ameaçados. Na Galícia, não havia mais livros grátis para 25% dos alunos. Na região da Catalunha, mil professores foram demitidos e 33 dos 34 centros de formação de professores foram fechados. Em Valência, a prefeitura suspendeu o Festival de Cinema.
Em Madri, a ajuda do estado para festivais culturais foi cortada pela metade, assim como houve uma redução de 18% nos orçamentos de museus. O estado passou a cobrar taxas de matrículas para berçário e elevar as taxas de universidade. No total, 40 novos impostos foram criados apenas na região de Madri.
Para essas pessoas que sofreram esses cortes, não houve resgate. Houve, sim, um pedido para que apertassem os cintos, para que compreendessem a situação difícil que atravessava o país. Para que adiassem o futuro.
Insisto: vocês não foram os únicos responsáveis.
Mas sabe qual foi resultado da crise financeira, do resgate dos governos e da explosão da dívida? O desmonte de parte do estado de bem-estar social, a descrença na classe política, a dúvida sobre a capacidade de a democracia dar respostas e a explosão da extrema direita, charlatães e populistas.
Mais de uma década depois, aqui estamos de novo falando em salvar bancos. E eu continuo me perguntando: e quando salvaremos gente?
Saudações democráticas,
Por Jamil Chade, jornalista, atua como correspondente na Europa
*Texto publicado originalmente no UOL
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Este texto é opinativo e não reflete, necessariamente, a opinião do site Brasil Independente.