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Nildo Ouriques – Num tempo canalha, as palavras perdem sua força e, banalizadas, já não encontram seu sentido original ou sua potência explicativa. A frouxidão ideológica, sempre um produto da hegemonia liberal (progressista ou conservadora), revela o quanto devemos cuidar da linguagem como expressão da consciência prática, tal como Marx escreveu em A ideologia Alemã. Em larga medida, essa é a razão pela qual a burguesia por meio dos monopólios de comunicação e das universidades produziram as “guerras de narrativas” onde a despeito de antagonismos, todos os gatos são, mesmo a luz do dia, pardos. Não se trata de algo novo, ao contrário; é fenômeno recorrente na História. No Brasil, a banalização da linguagem adquiriu perfil particular, praticada por todos aqueles que se julgam de esquerda ou se autodefinem como progressistas. A direita, ao contrário, especialmente após 2018, chama as coisas pelo seu nome e, aos ouvidos delicados da consciência ingênua, é considerada truculenta ou medieval quando apenas atua de acordo com seus interesses, objetivos e crenças.
Nos últimos anos – especialmente durante a pandemia – a esquerda liberal utilizou o adjetivo “genocida” para atribuir responsabilidades criminosas ao protofascista Bolsonaro na presidência da república. De minha parte sempre atuei com sumo cuidado diante de semelhante uso, inclusive na análise da política sanitária, porque além de elementar realismo político é também necessário preservar a força das palavras. A propósito, recordo que Marcelo Freixo anunciou numa entrevista que não chamava Bolsonaro de “genocida” porque, segundo suas pesquisas, o povo não entendia o adjetivo; a esperteza eleitoreira não é de meu agrado e, em consequência, não me orienta. Bolsonaro não era um genocida porque o Brasil não sofria nem sofre um genocídio (o mesmo vale para o apelativo “genocídio negro” de Abdias do Nascimento) Tampouco utilizei a expressão “fascista” para caracterizar o governo de Bolsonaro porque entre o regime político que sofremos e o fascismo há no mínimo um abismo!
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Para não ser exaustivo: enquanto a esquerda liberal (PT, PSOL, PC do B, PCB, etc) afirmava a importância estratégica da “luta contra o fascismo” e recomendava voto na chapa petucana (Lula/Alckmin), a Revolução Brasileira lutou pelo voto nulo. Ora, se a luta contra o “fascismo” ou o “neofacismo” – seja lá o que isso representa! – orientava o voto na ultima eleição presidencial e constituía de fato um horizonte estratégico, não há razão para negar apoio ao atual governo que desde sempre afirmou seu compromisso com a continuidade da economia política do rentismo e programas sociais amparados na mera filantropia. Entretanto, a constituição de um governo de compromisso democrático contra o fascismo não seria desprezível se, de fato, estivéssemos diante da ameaça fascista. Ocorre que a “ameaça fascista” é inexistente e o argumento nunca passou de álibi para a esquerda liberal e seu corolário – o cretinismo parlamentar – seguisse tateando no labirinto lulista. Entretanto, é possível ver agora o antigo oportunismo em favor de Lula em signo oposto, simulando oposição ao presidente como se o governo petucano estivesse rasgando antigos compromissos. Ora, o caráter conservador do governo não autoriza a “surpresa” pois foi anunciado com todas as letras durante toda a campanha tanto no disciplinado apego a economia política do rentismo, na política externa, quanto no respeito as instituições burguesas, etc.
Nesse contexto, nem mesmo o genocídio em curso contra o povo palestino balançou o apego liberal ao governo Lula/Alckmin por parte de movimentos sociais e figuras públicas. Nada parece comover a maioria dos liberais de esquerda, nem mesmo o assassinato em massa promovido pelo sionismo contra o povo palestino exibido ao vivo pelos monopólios de TV. Em consequência, lideranças populares, parlamentares, sindicalistas, comentaristas “alternativos”, buscaram rápida filiação ao “esforço humanitário” praticado pela diplomacia do Itamarati restrita ao resgate de brasileiros confinados em Gaza e dos simulacros de resolução em busca de um cessar fogo ensaiados quando a presidência do Conselho de Segurança da ONU esteve com o Brasil mas, nunca é demais recordar, sempre sob comando efetivo dos Estados Unidos.
A contradição salta aos olhos: enquanto setores da esquerda liberal exibem solidariedade abstrata ao povo palestino, calam a crítica sobre a cumplicidade prática da diplomacia brasileira com o genocídio. Um exagero? Não! Os sucessivos massacres contra o povo palestino praticados pelo sionismo com apoio estratégico do imperialismo estadunidense contam com a cobertura televisiva dos monopólios como a Globo e CNN, mas ainda assim não conseguem esconder as milhares de crianças, mulheres, velhos assassinados em suas casas, hospitais, igrejas, campos de refugiados, ambulâncias, etc. As resoluções na ONU são francamente inúteis e, quando estimuladas, contam apenas como artigo de consumo para alimentar a consciência ingênua em cursos universitários de relações internacionais. O genocídio praticado por Israel – com apoio completo dos países europeus – somente poderá ser resolvido no terreno militar e político; a diplomacia, tal como tem sido praticada pelo governo Lula/Alckmin, revela-se agora mais do que em qualquer outra época, completamente cativa de Washington e da direita brasileira. O rumo do governo aqui ou na economia política, é claro: somar à direita para disputar nesse terreno com Bolsonaro!
Uma vez concluída a operação resgate – ainda que brasileiros ainda permaneçam cativos em Gaza – e após as enormes manifestações em Londres (além de algumas importantes nos Estados Unidos), a miséria lulista ficou ainda mais clara. Não basta Lula reconhecer – sempre tardiamente! – que um genocídio esta em curso pois nas atuais circunstâncias, até mesmo conservadores já reconhecem os crimes sistemáticos de Israel embora adicionem justificativas para legitima-lo. A “opinião pública” mudou, para dize-lo na linguagem marqueteira, a única que, afinal, a esquerda liberal respeita. Ademais, o Hamas – com apoio heroico do povo palestino – recolocou a questão nacional palestina no centro da disputa mundial. Portanto, os apelos à paz são simplesmente inúteis, exceto quando solicitados pelo Vaticano; ocorre que o Brasil pode fazer muito mais que o impotente apelo do sumo pontífice, pois dispõe de recursos inúteis à vida após a morte, mas indispensáveis para garantir vida plena aqui e agora aos condenados da terra!
Nesse contexto, podemos ver que a ofensiva sionista/imperialista contra o povo palestino motivou, em alguma medida, a mudança de ânimo de certos setores progressistas em relação ao governo e, ainda que ligeiramente, parece ter revelado de maneira mais clara a servidão e vassalagem do Itamaraty diante da política externa dos Estados Unidos. Até a virada do século, a análise sobre a conjuntura nacional iniciava com a avaliação da luta de classes em escala mundial. A consideração da situação nacional estava com frequência baseada na criteriosa análise do conflito de classes em escala mundial mesmo quando observada pelo limitado prisma da “guerra fria”. Nessa perspectiva, não somente acuso o provincianismo dominante nas tentativas de interpretação do que de fato ocorre entre nós mas sobretudo a negativa implícita ou a recusa aberta em observar as crises e conflitos mundiais desde uma perspectiva de classe, ou seja, da luta de classes. Não por outra razão, no lugar da análise rigorosa do conflito de classes mundial, o “horizonte” da esquerda liberal não ultrapassa as tradicionais e miseráveis considerações sobre resultados de processos eleitorais: “Milei venceu na Argentina, a situação é adversa” brada a sabedoria do assessor parlamentar. “Lula venceu! Uma derrota para o fascismo e a onda conservadora!”, grita o sindicalista desavisado. “Petro, na Colômbia, manda pra reserva generais assassinos. Uma vitória!” ensina o deputado na tribuna. Eis a análise da conjuntura mundial…
O genocídio em curso contra o povo palestino na forma concreta da limpeza étnica (Ilan Pappé) promovido pelo sionismo abriu, subitamente, nova exigência política-intelectual ainda incapaz de romper a ingenuidade e oportunismo da trajetória da esquerda liberal inclusive diante do terrorismo de estado de Israel que, a despeito de forte carga ideológica e propagandística em favor do sionismo, os monopólios de TV não são capazes de ocultar. A antiga paralisia ou mesmo a recusa em ver a guerra de classes em escala mundial não foi superada, mas é evidente o descontentamento com o governo Lula e a lenta, porém inexorável, erosão do moralismo rasteiro que orienta as declarações presidenciais sobre os temas caros a tradição humanista que de alguma maneira formou a esquerda em nosso país.
De fato, ninguém poderá explicar o moralismo lulista e seu “humanismo” rasteiro, senão como condição necessária para conviver em harmonia com a política imperialista estadunidense no Oriente Médio na qual Israel é a sentinela a serviço do imperialismo. A direita bolsonarista não vacila em seu vínculo orgânico e militante em favor do sionismo tão importante para a burguesia, os monopólios de comunicação e, não menos decisivo, na cúpula das forças armadas. Portanto, a política externa lulista é cumplice da ofensiva imperialista contra o povo palestino pois é incapaz de repudiá-la diante do genocídio e da limpeza étnica em curso em Gaza e, em breve, na Cisjordânia. Lula e seu governo conservador apostou tudo no simples e necessário resgate dos brasileiros vivendo em Gaza, a versão mais fiel e concreta do que é o inferno terrenal para aqueles que acreditam na existência (e no castigo!) dos deuses. A presidência do Conselho de Segurança (CS) da ONU apareceu nos monopólios de TV – especialmente Globo e CNN – como expressão do “protagonismo brasileiro”; entretanto, nem a apologia sobre as “possibilidades” do Brasil na presidência do CS tão funcional à política imperialista, foi capaz de ocultar sucessivos fracassos, além de revelar os limites objetivos da solução negociada de interesses numa mesa regada a cerveja e picanha… Cativo da ingenuidade, o lulista/petista não percebe sequer que até mesmo a última leva de brasileiros liberados foi produto da articulação entre Israel, Estados Unidos e o … Catar! Portanto, o surrado e apologético bordão segundo o qual “o Brasil voltou” nas disputas mundiais caiu por seu próprio peso!
Diante do genocídio sionista contra o povo palestino, o oportunismo eleitoreiro da esquerda liberal se depara com a miserável condição de reconhecer que diante de ação comandada por Netanyahu e o tradicional terrorismo de Estado praticado historicamente por Israel, o protofascista Bolsonaro é menos que um aprendiz a despeito de sua devota filiação sionista. O reconhecimento dessa diferença elementar não anistia sequer uma molécula moral e política ao personagem e seu governo, mas apenas restitui o terreno concreto da luta de classes e sua exata qualificação. Bolsonaro não é, nem de longe, Hitler ou Netanyahu.
A diplomacia brasileira – caso estivesse de fato orientada pelo apego à soberania nacional – não poderia senão afirmar de maneira clara que nas atuais circunstâncias, Israel não tem direito a existência; não, pelo menos, enquanto a Palestina não for um estado com idêntica existência e garantias! A consciência diplomática liberal, apegada ao “direito internacional” deveria reconhecer essa condição básica pois é precisamente o que ordena a resolução 242 da sacrossanta ONU, que legitimou diante da força das potências imperialistas o deslocamento de milhões de judeus para território palestino e, no limite, permitiu o avanço do sionismo. Entretanto a tradição brasileira em política exterior é prisioneira moral e ideológica da indústria do holocausto , como acertadamente ensinou Norman Finkelstein. Além, é claro, de sua crônica incapacidade de fazer valer nossa soberania em qualquer fórum mundial necessário para assegurar controle do território e da riqueza nacional. De resto, nunca é demais recordar que “protagonismo internacional” não se conquista com a prática cínica do bom mocismo que se tornou uma especialidade da maioria do corpo diplomático com apoio completo da imprensa burguesa.
A defesa da causa palestina está revelando também o alcance e a orientação ideológica de toda luta antirracista no Brasil. A longa reflexão crítica sobre a escravidão em nosso país – especialmente fecundas nas contribuições marxistas – foi arteira e ideologicamente substituída pelo “combate” burguês autorizado contra o “racismo estrutural” sob comando dos monopólios televisivos e da influência identitária importada do Partido Democrata dos Estados Unidos especialmente forte nas universidades. Não deixou de ser uma surpresa observar que as “lideranças” negras mais autorizadas do país e festejadas nas redes digitais ainda guardam enorme silêncio sobre o racismo sionista contras os palestinos e os árabes em geral. Você já viu ou leu algo de Djamila Ribeiro em defesa dos palestinos? Acaso, o racismo de Israel, tanto quanto aquele vigente na África do Sul até março de 1991 (Apartheid), não é uma versão particular do racismo destinado contra os palestinos? E se o racismo existente no Brasil é, de fato, detestável e merece nosso combate, o que dizer do sionismo como a maior expressão estatal e religiosa de racismo em nosso tempo? Entretanto, deputados e vereadores, assessores e lideres sindicais, da esquerda liberal guardam enorme silêncio sobre o genocídio particularmente visível em Gaza enquanto gritam todos os dias contra o “genocídio do negro” em nosso país. Mesmo agora, lideranças populares vinculadas ao PT e ao PSOL – para mencionar apenas exemplos mais grotescos e vergonhosos – guardaram silêncio diante da limpeza étnica e, somente de maneira esparsa e tímida, começam a balbuciar algo sobre a tragédia em Gaza.
Nesse contexto, é fácil compreender os apelos genéricos a uma sorte de humanismo burguês rebaixado que reclama o cessar-fogo como se fosse possível convencer o estado sionista com palavras. Da mesma forma é possível observar o cinismo de um suposto “sionismo de esquerda” de acadêmicos a serviço da ordem burguesa condenar o Hamas como exemplo de atuação anti-moderna como se a política de Israel fosse em alguma medida defensável. Nas circunstâncias atuais o chamado “direito a existência de Israel” e seu religioso “direito à defesa” não passa de uma criminosa autorização para matar e cometer crimes de guerra, além, é claro, de permitir ou avalizar sua política sistemática e consciente de limpeza étnica na Palestina.
Não é preciso ser um gênio político para reconhecer que, no atual contexto, somente vitórias militares do Hamas contra o exército sionista poderá mudar a correlação de forças e abrir a possibilidade remota de um cessar-fogo, a bandeira tão cínica quanto impotente da diplomacia petucana praticada por Lula. Não obstante, se somente a luta dos palestinos poderá produzir efeitos capazes de interromper o genocídio em curso, há uma batalha aqui que devemos travar. Essa batalha não admite vacilo: é contra a política externa do governo petucano Lula/Alckmin. Não devemos vacilar no mais mínimo contra um governo cúmplice, funcional aos interesses imperialistas materializados por Israel contra o povo palestino em particular e os árabes em geral. De resto, a inesgotável fonte energética do Oriente Médio deveria alertar aos desavisados e ingênuos sobre o entreguismo praticado pelo lobista e senador do PT Jean Paul Prates na presidência da Petrobrás sob orientação de Lula, apoiados pela cúpula sindical da FUP e da FNP.
Alertei acima que não seria essa a primeira vez na história que nos defrontamos com opções realmente dramáticas inerentes a lógica das situações extremas que, finalmente, se impõe como o critério da verdade. Na tradição socialista, é útil lembrar a aguda análise de Rosa Luxemburgo a respeito das decisões dos bolcheviques sob comando de Lenin em 1918, oportunidade em que acusou os comunistas alemães sobre suas responsabilidades diante dos limites objetivos da Revolução Russa. Rosa argumentou que “o desenrolar da guerra e da Revolução Russa mostraram não a falta de maturidade da Rússia, e sim a do proletariado alemão para cumprir sua missa histórica… O destino dela dependia inteiramente dos (acontecimentos) internacionais” (A revolução russa). Não serei exaustivo sobre a polêmica Rosa x Lenin, mas a lembrança é suficiente para observar que o genocídio do povo palestino exige outra orientação e conduta dos revolucionários no Brasil. Em larga medida, nem a histórica capacidade de luta do povo palestino, nem eventuais vitórias militares do Hamas, poderão bloquear a ofensiva sionista cujo horizonte é a solução final nazista destinada aos palestinos. Nesse contexto, será preciso que forças políticas se levantem no mundo inteiro e cabe lembrar ao provincianismo que nos domina que “o mundo é aqui”.
No Brasil, a recusa em reconhecer questões elementares da luta contra o sionismo já se transformou num esporte nas filas da esquerda liberal. Assim, é possível ver que especialmente no início do recente conflito iniciado em 7 de outubro as críticas eram dirigidas ao Hamas e “suas ações terroristas” responsáveis por “matar inocentes” na mesma medida em que também reprovavam Israel pela “desmedida reação” as ações do Hamas. O comportamento da esquerda liberal em “condenar os dois lados” nunca passou de um artificio para permanecer no campo da hegemonia da classe dominante. A crítica ao terrorismo de Estado de Israel apoiado pelo imperialismo estadunidense e todas as potencias europeias, ainda não ganhou cidadania em suas filas. É tão tímida quanto cúmplice. Essa linha de atuação mantém laços com a pratica “civilizada” na política e afirma o bom mocismo que também a orienta internamente em sua relação carnal com o governo Lula.
Portanto, a exigência de ruptura de relações diplomáticas do Brasil com Israel entre outras medidas possíveis e necessárias simplesmente não entraram ou foram lembradas tardiamente por alguns deputados, sempre, obviamente, de acordo com o decoro parlamentar. A propósito, a recente nota de 61 deputados entre os quais a bancada inteira do PSOL, sequer menciona a exigência de ruptura de relações diplomáticas mas a “simbólica” e patética convocatória para que o embaixador brasileiro em Israel retorne a Brasília. Haveria algo que o diplomata pode nos revelar além do que já vemos na TV? No entanto, a ruptura com o governo petucano encabeçado por Lula e a passagem para a oposição de esquerda aberta como único meio de pressão contra a hegemonia liberal não passa pela cabeça de nenhuma de suas “lideranças”. O artifício adotado para manter fidelidade à Lula/Alckmin consiste em decifrar as intenções embutidas nas posições de Lula ou aproveitar qualquer declaração ou ato da direita para subir na tribuna e atacar o protofascista Bolsonaro. Nada mais.
É necessário reconhecer que as manifestações militantes de apoio a causa palestina realizadas no Brasil foram, de fato, modestas, a despeito da clara oposição contra a política sionista responsável, entre outras, pela sutil mudança nos discursos de Lula, personagem sempre atento aos ventos do humor popular. A antiga filiação internacionalista de extração comunista na qual grande parte da esquerda brasileira se formou, desapareceu para sempre. Ocorre que a concepção internacionalista jamais esteve confinada no dominante bordão “marxista-leninista”, um produto típico da ideologia do estado soviético. As revoluções sociais – como a Nicarágua, por exemplo – não assumiu aquela tradição e o nacionalismo terceiro-mundista cumpriu também função importante na luta anti-imperialista, especialmente aguda no Oriente Médio. Entretanto, se aquela tradição não comportava as forças vitais da Revolução Brasileira e merecia todos os reparos que a história registra, o comportamento atual da antiga esquerda brasileira expressa todos supostos liberais e encontra nos Estados Unidos – o mais importante país imperialista – seu horizonte político-ideológico. Em consequência, o artigo de consumo mais importante das filas da esquerda liberal é o identitarismo de extração estadunidense e cuja função ideológica é esterilizar até o fundo e o fim qualquer vestígio de classe nas lutas parciais (mulheres, negros, gays, etc). O conceito de classe e povo são subordinados quando não simplesmente desconsiderados e, no limite, tratados como se nações fossem “imaginárias”. O individualismo burguês que legitima a concorrência capitalista é o mesmo que informa a mobilidade social das políticas de reconhecimento e ações afirmativas incapazes de contemplar milhões num país mestiço como o Brasil.
O internacionalismo comunista orientado pela URSS até 1989 desapareceu mas não foi substituído pelo “reino da liberdade individual” onde cada um faz o que quer em defesa do pluralismo funcional a sociedade capitalista e a correspondente ideologia burguesa do “ser livre”. Agora, como podemos ver a luz do dia, a liberdade de pensar esta totalmente garantida na mesma medida em que completamente filiada aos “valores” e praticas sociais emanadas do centro do Império. O novo templo de adoração não é mais Moscou, mas Washington! O outrora “detestável ouro de Moscou” foi substituído pela grana turbinada e fácil das ONGs e das Fundações num sistema de cooptação que incluiu parlamentares, burocratas dos partidos e lideranças da “sociedade civil”. Tudo à luz do dia! Portanto, não estou alertando contra um “provincianismo” qualquer mas, ao contrário, acuso o provincianismo de extração colonial, pendente da “orientação” do Partido Democrata e das migalhas ideológicas oriundas na Europa submissa aos Estados Unidos, aquela também completamente sem projeto próprio. A hora e a conjuntura mundial exigem radical revisão da orientação ideológica entre nós: após o 7 de outubro, quando você falar em “resistência”, pense na Palestina! Quando acusar o racismo, estude o sionismo! Quando clamar pela paz, analise os horrores e as causas da guerra. Quando clamar pela solidariedade, atue duas vezes antes de pensar! Washington não é a capital das luzes, mas o centro de decisão do genocídio.
A luta nacional palestina, tal como registra a História, conta com inimigos poderosos mas não invencíveis. Portanto, em perspectiva histórica, a lógica das situações extremas vigente na Palestina e nos territórios ocupados, incluiu também todos nós, a despeito da distância geográfica. Ora, Gaza e Cisjordânia constituem a vala comum do sofrimento humano que hoje mata impunemente crianças, mulheres, velhos, adolescentes, homens e mulheres, gays e heteros sem qualquer distinção, exceto a nacionalidade: basta ser palestino para estar sob a mira assassina do sionismo. A luta palestina foi, desde sempre, uma luta universal desde uma perspectiva nacional. A despeito da adversa situação em que se encontram os palestinos e também suas organizações políticas – entre elas o Hamas – sabemos que o combate ainda será longo e sem sentença prévia sobre o vencedor. Aqui, no Brasil, gozando de completa liberdade política e dispondo de meios ainda importantes para fortalecer a luta nacional palestina, caberá à esquerda revolucionária empenhar-se na solidariedade ativa em favor da liberdade de todo um povo. Não uma liberdade abstrata, mas a liberdade de dispor de seu território e a segurança para sua existência sem qualquer restrição. Nessa batalha, ao contrário do que a consciência ingênua e não rara oportunista que a esquerda liberal pratica, há que ter clareza sobre o outro nome da liberdade que pretendemos também para os brasileiros: Palestina Livre!
Por Nildo Ouriques, professor titular do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFSC, presidente do IELA-UFSC e integrante do PSOL
Revisão: Junia Zaidan
*Texto publicado originalmente pelo Portal Disparada
(Foto: Reprodução)
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