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O samba e a contradição de Belo – Diante de uma inquietação “monstra” acerca da notícia pra lá de extravagante de que o cantor Belo havia assinado ficha de filiação no partido de Bolsonaro, o Partido Liberal (PL), com vistas a sair candidato a deputado federal em 2022, pus-me a questionar se de fato é necessário muito esforço para, quem quer que seja, e nos digitais dias de hoje, compreender o paralelo que é possível (e legítimo) estabelecer entre samba e consciência negra ou de classe. Cheguei a conclusão de que não.
Primeiro porque a história social desse gênero musical está aí para ser revisitada por quem desejar ou mesmo experenciada pelo sambista de hoje, com algumas poucas variações em termos do cambiamento do preconceito e do baixo status individual do sambista e comunitário do samba. Sabemos que este velho bamba sempre cultivou o componente político e social em sua historicidade, cujo marco inicial remonta o século XIX.
Para lá de ser uma expressão cultural das classes populares, o seu imenso potencial de luta política, de acúmulo, de avanço da consciência de grupos marginalizados, manteve vívidas, a história do negro, do índio, dos subalternos, daqueles que buscavam a emancipação social com o enfrentamento à exploração de classe e, sobretudo, à opressão étnico-racial e seus protocolos de infames violências sobre corpos negros, suas músicas, danças, vestimentas, culinárias, festas profanas e sagradas.
Segundo porque Bolsonaro representa todo esse martírio dos oprimidos, a partir de sua política corrupta, racista, machista, sexista, negacionista e genocida que aprofunda a desigualdade, mata ou deixa morrer.
Tenho absoluta certeza de que o Belo e o Brasil se lembram dos 80 tiros desferidos contra o carro de um trabalhador, negro, músico, que ia com a família a um chá de bebê, e que o presidente declarou que o exército não havia matado ninguém, que o exército era do povo; ou aquela declaração homofóbica nos EUA de que o “Brasil não pode ser o país do mundo gay, de turismo gay”, e emendou: “quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade”.
Bom, podíamos elencar aqui uma série sem fim de impropérios e atrocidades deste desgoverno, como a de isentar de punição fazendeiros que dispararem em quem adentrar em seus “domínios”, liberando o assassinato de indígenas e de militantes da luta pela terra; como a proibição de divulgação de uma propaganda do Banco do Brasil que retratava a diversidade brasileira sob a alegação de empoderamento das minorias pela esquerda; ou mesmo a corrupção e o clientelismo, como a farra dos tratores superfaturados até 259% e o orçamento paralelo de 3 bilhões pra comprar o centrão; a tentativa do MEC de licitar de forma ilegal a compra de ônibus escolares superfaturada em 700 milhões.
Gente, tem tanta coisa que a gente se perde num mar profundo de prevaricações. Não podemos ignorar as velhas rachadinhas; o esquema de facilitação e exportação ilegal de madeira para os Estados Unidos, engendrado pelo então ministro do meio ambiente Ricardo Salles, gestores da instituição e do IBAMA, todos alvos da operação Akuanduba da Polícia Federal; o veto à Lei Paulo Gustavo, que visa destinar mais de três bilhões em verbas federais distribuídos para estados e municípios socorrerem o setor cultural (que por ora agoniza) e ajuda-lo a se recuperar dos impactos da crise provocada pela pandemia.
Penso que o dever moral de empatia deva contrapor o veto a uma lei que tem duas finalidades importantes para a Cultura: a de garantir ações emergenciais para o setor; a de simbolicamente homenagear o ator e humorista morto em 2020 devido complicações da Covid-19, em meio ao caos na saúde pública perpetrado pelo governo federal, com desdobramentos desde a tentativa de compra superfaturada de vacinas e atraso na entrega até a falta sistemática de oxigênio, o colapso da rede hospitalar pública e privada mediante o número crescente de vítimas do coronavírus, que hoje passa dos 660 mil seres humanos.
Tudo isso sem o presidente Jair Bolsonaro manifestar, por qualquer forma, uma fagulha sequer de sentimento de comoção e pesar pelas vidas perdidas e pelo sofrimento das famílias, mães, pais, irmãos, amigos dessas pessoas. Pelo contrário, ainda encontra tempo e ânimo sadomasoquista para fazer piada diante de um cenário catastrófico e desolador da sociedade brasileira: “quem é de direita toma cloroquina, quem é de esquerda toma tubaína”. Por que motivos haveria um chefe de estado se preocupar ou falar de mortes em massa, já que, segundo ele próprio, quem fala de morte é coveiro?
Se alguém ainda tem dúvidas de que foram os grupos sociais marginalizados que mais sucumbiram na pandemia de Covid-19, basta conferir os dados dos principais centros de pesquisa que se debruçaram sobre essa questão para conferir os impactos distintos do coronavírus em diferentes contextos socioeconômicos no país, sobretudo aqueles que envolvem pessoas em situação de rua, LGBTQIA+, moradores de favela e periferias, população indígena, quilombola, negra, ribeirinha, carcerária, migrantes, etc. Já a pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da USP em conjunto com a Conectas Direitos Humanos explica no boletim “Direitos na Pandemia – Mapeamento e Análise das Normas Jurídicas de Resposta à Covid-19 no Brasil” que Bolsonaro empreendeu uma estratégia institucionalizada de propagação do vírus, que fez do Brasil um dos países mais infectados pela covid-19 no mundo.
Evidentemente que o Belo e o Brasil se lembram da série de medidas tomadas pelo governo para impedir que trabalhadores pudessem se proteger da covid-19, como, por exemplo, ampliar o conceito de atividades essenciais até para salão de beleza e anular o direito de auxílio emergencial determinado pelo Congresso a várias categorias. Fora os vetos presidenciais para anular a obrigatoriedade do uso de máscaras em estabelecimentos com autorização para funcionar, e a guerra imposta aos governadores e prefeitos que tentavam implementar medidas de prevenção e combate ao vírus.
Há intenção, há plano e há ação sistemática nas normas do Governo e nas manifestações de Bolsonaro, conforme apontamentos do estudo. Os resultados contradizem interpretações com base na incompetência e negligência de parte do governo federal na gestão da pandemia e revelam a aplicação e a eficiência da atuação do governo no sentido de ampliar a disseminação do vírus no território nacional a partir de atos normativos do presidente, da propaganda contra a saúde pública, e de fake news e informações técnicas sem comprovação científica, visando retomar, o quanto antes e a qualquer custo, a atividade econômica. Trata-se da maior violação jamais vista acerca do direito à vida e do direito à saúde dos brasileiros, com anotações, inclusive, do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal de Contas da União no tocante a condutas e omissões conscientes e voluntárias de gestores federais, passíveis de enquadramento nos crimes contra a saúde pública, contra a humanidade e de responsabilidade.
E de fato é nesse ponto que o povo brasileiro, principalmente o de origem mais humilde, não pode se deixar trair pela memória. A ausência da memória de nossas perdas e retrocessos nos últimos anos é um desincentivo à necessidade de irmos mais longe em nossa própria história para reencontrar as lembranças de nossas raízes, de reconectarmos com a nossa gente e com os nossos sentimentos mais humanos. E o samba pode nos transportar nessa viajem e nos ajudar a compreender quem somos, de onde viemos e para onde devemos seguir com nosso ativismo pela nossa vida, pela vida dos nossos e de nossa comunidade. Aliás, no dizer de Paulinho da Viola, o samba é quem dá conta de “toda a vida Marginal”, história, luta, amores, desamores na cultura contextual preta e periférica dos marginalizados.
O Belo e o Brasil certamente também se lembram dessas narrativas que fundaram o grupo Soweto em Cidade A. E. Carvalho, no extremo da zona leste, mas com gente de Diadema, Água Funda, Capão Redondo, Campanário, tudo periferia de São Paulo. O desejo era o de se deixar inspirar pelas lutas locais (e transatlânticas) por direitos e oportunidades e fazer o nosso samba, curtir a nossa onda, badalar com os parceiros da quebrada, ajudar nossa família.
Assim, o nosso lema (djavaniano) era: “que os negros lutem para conquistar espaço”. Influenciados pelos feitos heroicos de uma turma da pesada, Negritude Jr., Katinguelê, Art Popular, Sensação, Molejo, Raça Negra, Raça, Só Preto Sem Preconceito, decidimos ser nós mesmos para valorizar e continuar uma tradição.
O que eu poderia dizer? Belo, meu cumpade, de lá pra cá muita coisa aconteceu, o samba nos uniu e nos separou, mas jamais nos colocou em lados distintos. Afinal, somos do mesmo lugar, e vivenciamos, pelo menos até o momento de sua filiação no time de Bolsonaro, a mesma utopia de uma história de luta política e social que o próprio samba conta e reconta desde XIX.
Mas desta vez, pela primeira vez, estamos em lados opostos e lutamos por uma ideia de Brasil muito diferente. Ainda que surpreso, faz parte do jogo respeitar a sua decisão. Todavia, em respeito à história essencial do Soweto e sua narrativa fundacional, grito forte e em bom tom: Fora Bolsonaro!
Por Claudinho de Oliveira, sociólogo, cantor, compositor e fundador do Grupo Soweto
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Este texto é opinativo e não reflete, necessariamente, a opinião do site Brasil Independente.