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Por Tiago Nogara, via Portal Disparada
No dia 22 de abril de 1968, estudantes da Universidade de Nanterre, na França, organizaram uma ampla manifestação contra a separação entre rapazes e moças nos dormitórios universitários. Diante da repressão ao protesto, o conjunto do movimento estudantil nacional protagonizou atos nas ruas e ocupações das universidades, com barricadas e palavras-de-ordem libertárias tais como “é proibido proibir” e “sejam realistas, peças o impossível”. A sequência dessas manifestações conformaria os eventos do famoso Maio de 1968 francês, um dos maiores marcos históricos da caminhada estudantil europeia, que assumiria desdobramentos mais práticos apenas após a intervenção do movimento sindical em suas ações.
Paralelamente, crescia nos Estudos Unidos da América a influência dos movimentos hippie e da contracultura, com a juventude aderindo em massa às bandeiras em prol da liberação sexual, uso indiscriminado de drogas e da “paz mundial”. Em comum entre as ações de estudantes estadunidenses e europeus de então, havia a centralidade da luta contra os costumes sociais predominantes, reproduzindo um conflito intergeracional, e de repulsa às autoridades (fossem políticas ou familiares), que pouco abalava as estruturas fundamentais do poder das elites locais e internacionais.
No dia 28 de março 1968, pouco menos de um mês antes do começo das manifestações francesas, foi assassinado pelas autoridades policiais, nas dependências do restaurante universitário do Calabouço, no Rio de Janeiro, o estudante Edson Luís, de apenas 18 anos. O evento brutal, decorrente da invasão policial ao restaurante (sob a alegação de impedir a organização de uma passeata), acendeu a chama da repulsa popular à ditadura militar. Nos dias seguintes, centenas de milhares de pessoas participaram de atos em homenagem a Edson Luís, numa escalada de manifestações que resultaria na famosa Passeata dos Cem Mil, que antecederam em alguns meses a decretação do AI-5 pela ditadura.
Nesse mesmo ano de 1968, o movimento estudantil argentino passou a impulsionar pequenos protestos nas principais universidades do país, reivindicando lutas setoriais tais como as contra os preços abusivos nos refeitórios universitários e os cortes das verbas nas universidades públicas. No começo do ano seguinte, a morte de um manifestante na província de Corrientes desencadeou a propagação dos protestos por todo o país, que foram ainda mais inflamados pela ocorrência de uma nova vítima fatal, dessa vez em Rosário. O conjunto dessas movimentações resultou nos memoráveis eventos do Cordobazo, quando os movimentos estudantil e sindical da cidade de Córdoba se uniram para protagonizar um imenso protesto contra a ditadura militar do general Onganía, que só foi controlado após a ocupação militar da cidade, que gerou dezenas de mortos e centenas de presos e feridos.
Também em 1968, vigorosas manifestações estudantis na Cidade do México foram reprimidas com fogo pelas autoridades policiais, no que ficou conhecido como o Massacre de Tlatelolco, que vitimou mais de 200 pessoas. À época, os jovens vietnamitas pegavam em armas e sacrificavam suas vidas para defender o país da invasão estadunidense. Esse mesmo caminho foi seguido por uma série de jovens trabalhadores e estudantes no conjunto da América Latina, frente à proliferação das sanguinárias Ditaduras de Segurança Nacional. Na China, era a juventude que se organizava massivamente nas fileiras da Revolução Cultural. Em comum, todos acreditavam ser esses os caminhos para a elevação da qualidade de vida dos seus compatriotas.
Analisando o conjunto desse quadro, aparecem claramente as principais distinções entre as demandas do movimento estudantil e da juventude europeia e estadunidense, de um lado, e dos países do chamado Terceiro Mundo, do outro. Enquanto os primeiros viviam o auge dos chamados Estados de Bem-Estar Social – tendo asseguradas alimentação, saúde, segurança, aposentadoria e educação -, os demais assistiam à cooperação de parte de suas elites nacionais com os interesses imperialistas, em prol da manutenção de um modelo político e econômico marcado pela desigualdade social e pelo atraso de suas forças produtivas. Ao tempo em que os jovens europeus e estadunidenses, com suas necessidades elementares satisfeitas, centravam seus esforços nas lutas comportamentais e nos conflitos intergeracionais (com foco nas chamadas “liberdades individuais”), os latino-americanos, africanos e asiáticos erguiam a bandeira nacional, em favor do triunfo da soberania, do desenvolvimento e da justiça social em seus países.
Passadas algumas décadas, tal fotografia foi modificada. No Brasil, mais especificamente, ela foi alterada apenas em partes.
Nosso povo, e consequentemente a imensa maioria de nossa juventude, segue convivendo com um modelo político e econômico parasitário. Dados de 2019 do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) confirmam: mais da metade da população brasileira segue sem acesso à coleta de esgoto, e cerca de 34,2 milhões de pessoas sequer contam com abastecimento de água. Conforme levantamento do IBGE em 2020, quase 52 milhões de brasileiros vivem na pobreza, e cerca de 13 milhões em situação de extrema-pobreza, situação certamente agravada com os efeitos da pandemia. Dados disponíveis também indicam que praticamente 50 milhões de jovens e adultos, entre 15 e 64 anos, situam-se em condição de analfabetismo ou analfabetismo funcional.
No entanto, para grande parte das organizações políticas de juventude e do movimento estudantil não são mais as bandeiras nacionalistas, desenvolvimentistas, anti-imperialistas e de justiça social que devem centralizar suas ações. Cada vez mais, jovens universitários e organizações políticas ditas “progressistas” insistem em mimetizar as demandas comportamentais importadas dos seus congêneres europeus e estadunidenses. Num país marcado pela miséria, a violência e a injustiça, visam cada vez menos entrelaçar as demandas materiais imediatas dos segmentos populares com as lutas de vanguarda dos estratos politicamente organizados.
Preferem, em seu lugar, aderir à “Guerra Santa” da fiscalização dos costumes e comportamentos supostamente “antiquados” da maioria da população, estabelecendo um enorme fosso entre o povo, majoritariamente conservador (e voltado para suas necessidades imediatas), e parte dos setores ditos “progressistas” (mas que se converteram em seguidores da cartilha pós-moderna de realidades completamente distintas da brasileira). É nessa “guerra” que se alinham, por vezes sem perceber, ao mesmo itinerário de fundações e organizações não-governamentais europeias e estadunidenses (que distribuem gordas bolsas para nossos estudantes internalizarem as práticas do liberalismo político e econômico em suas universidades), das alienadas celebridades da Rede Globo, e, não raramente, aos interesses mais escusos existentes na política nacional.
Hoje, presenciamos a tragédia de mais de 300 mil brasileiros vitimados fatalmente pela pandemia do coronavírus. O presidente eleito, Jair Bolsonaro, responsável direto por tal infâmia, não teve a simpatia do povo nas eleições de 2018 por seu programa neoliberal de destruição do Estado, venda de ativos estratégicos nacionais, privatizações, cortes de gastos sociais e alinhamento da política externa ao que há de mais retrógrado no mundo. Do começo ao fim da campanha, adotou a tática de aceitar o jogo proposto pela parcela alienada e pós-moderna dos segmentos “progressistas”, transferindo a arena do combate para onde sabia que levaria vantagem: os debates comportamentais.
Os eventos de 1968 já estão distantes em mais de cinco décadas. São as lições das distintas formas com as quais as juventudes dos países “desenvolvidos” e “subdesenvolvidos” lidaram com seus problemas imediatos que podem ajudar, hoje, a escaparmos das armadilhas que sustentam as mais parasitárias forças antinacionais à frente do governo brasileiro.