Share This Article
Por Douglas Ceconello, via Globo Esporte.
Na data que marca os 57 anos do golpe militar, apenas sete dos vinte clubes a primeira divisão se manifestaram. Ainda é pouco, mas já é um avanço em relação aos anos anteriores.
Apesar da tentativa de emplacar o 31 de março como aniversário do golpe militar, o dia em que aconteceu a deposição do presidente João Goulart apontava no calendário 1º de abril de 1964, como já explicou o jornalista e escritor Mário Magalhães. O período de terror já começava baseado na dissimulação. Ontem, clubes brasileiros foram às suas redes sociais para condenar a ditadura, mas foram poucos — dos 20 times da primeira divisão, apenas sete se manifestaram, e muitos o fizeram de maneira tímida, com uma elogiável mas bastante morna “defesa da democracia”. Vários dos considerados “pequenos” mostraram maior disposição.
É sintomático da sociedade brasileira que 57 anos depois ainda exista melindre em condenar um período de exceção como a ditadura civil-militar que se estendeu até 1985, hiato marcado pela suspensão da democracia e perseguição, tortura e execução de civis, fossem adversários ou “supostos adversários” do regime. Mas o fundo do poço tem porta-luvas. Quem dera fosse apenas o melindre: no império da ignorância vigente, hoje temos carreatas e comemorações por uma data que deu início ao macabro processo que culminou em milhares de mortes, incluindo cerca de 8 mil indígenas. O negacionismo no Brasil não começou com a Covid-19.
Se no Brasil nunca houve um acerto de contas com a própria história, e isso permitiu a liberdade de torturadores e ditadores para continuar pregando um discurso revisionista de um regime implacável, a Argentina seguiu o caminho oposto: apenas dois anos após o término da última ditadura militar dos vizinhos (1976-1983), os principais responsáveis eram julgados e condenados à prisão perpétua. Também em 1985, o La historia oficial, de Luis Puenzo, ganhava o Oscar de melhor filme estrangeiro. A obra passa pelo tema dos bebês roubados pela ditadura depois que as mães eram torturadas e mortas. Desde muito cedo, os argentinos escolheram não esquecer.
Em menos de dez anos, mais de trinta mil argentinos desapareceram ou foram assassinados em um impiedoso terrosismo de Estado, muitos arremessados desde aviões no mar ou no Rio da Prata, nos “Voos da morte”. O julgamento que levou os ditadores aos tribunais, já no governo de Raul Alfonsín, não teve corte militar ou algo do tipo: foram submetidos ao código penal vigente no país, algo inédito no mundo. Em 2013, o ditador Jorge Videla, arquiteto do regime, morreu em uma cela normal, aos 87 anos, sem nunca mostrar arrependimento pelos crimes que comandou.
Tamanho é o repúdio dos argentinos em relação à ditadura, manifestado pela frase “Ni olvido ni perdón” (“Nem esquecimento, nem perdão”) que familiares e descendentes dos ditadores renegam seus próprios vínculos. Muitos filhos de militares protagonistas do regime optaram por trocar de sobrenome. E a condição anônima dos desaparecidos políticos encontrou irônico desfecho nos funerais dos ditadores, muitas vezes enterrados em túmulos praticamente sem identificação, em cemitérios particulares, pois os outros com frequencia se recusam a aceitá-los. Da esquerda à direita no espectro político, são raríssimas as lunáticas vozes que saúdam algum aspecto da ditadura.
Esse sentimento misto de memória e repúdio coletivo é a principal arma da sociedade argentina para que não aconteça nunca más. E nisso cumprem importante papel os clubes de futebol: em 24 de março, data que marcou os 45 anos do início da ditadura, todas as agremiações da primeira divisão e muitas do ascenso manifestaram-se condenando, de forma clara e direta, aquele período trágico. Dias antes, Boca Juniors, River Plate, Racing e Argentinos Juniors haviam lançado uma convocatória para que familiares ou amigos de sócios dessas entidades que haviam desaparecido na ditadura entrassem em contato com os clubes, com o objetivo de conhecer suas histórias e reivindicar sua condição no quadro societário.
A reação dos argentinos à ditadura contrasta com a timidez do ambiente futebolístico brasileiro. A impressão é que muitos clubes daqui se manifestaram apenas por pressão de sua torcida, e alguns usaram de artifícios discursivos para não mencionar diretamente o regime. Mas um passo claudicante também anda pra frente: o número de manifestações foi muito maior do que nos anos anteriores. De agora em diante, é importante dar nome às coisas, chamar a ditadura de ditadura, não se render ao revisionismo que busca amenizar um aparato militar que perseguia, torturava e matava. E, sobretudo, por mais exigente que pareça, não esquecer jamais.
—
Este texto é opinativo e não reflete, necessariamente, a opinião do site Brasil Independente.
Veja mais notícias no BRI.