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“Ciro Gomes deve manter sua candidatura” – Na última semana, diversos foram os boatos e apelos em prol da desistência de Ciro Gomes à sua candidatura presidencial. Ainda que com distintos recortes, todos se alinhavam na suposição de que eventual desistência permitiria uma unidade das forças democráticas em torno da candidatura de Lula, viabilizando vitória em primeiro turno contra o obscurantismo bolsonarista.
Para além das reincidentes personalidades liberais que encabeçaram tais proposições, diversas figuras de inclinação nacionalista e desenvolvimentista alinhadas à candidatura lulista também endossaram o coro, ainda que insistindo em demarcar simpatia com o Projeto Nacional de Desenvolvimento de Ciro. A não adesão à campanha de Ciro deste segundo grupo – formado essencialmente por personalidades e agrupamentos minoritários dispersos em partidos como o PSB e o PCdoB (e sua fração composta pelo antigo MR-8) – representa não apenas uma divergência tática entre a militância da fracionada esquerda nacionalista no Brasil, mas uma ruptura estratégica que assinala muito do que acossou os quadros desenvolvimentistas ao longo das últimas décadas.
Após desafio, Ciro Gomes e Gregório Duvivier farão debate
No período entre a Revolução de 1930 e a década de 1980, o Brasil foi o país que registrou maiores índices de crescimento econômico no mundo capitalista, desafiado em números apenas pelo epicentro socialista da União Soviética. Com exceção de pequenos ensaios de orientação liberal em alguns governos, nesse ínterim prevaleceu no Brasil a orientação nacional-desenvolvimentista que ensejou um Estado forte, interventor, embasado por uma visão com centralidade na soberania nacional e buscando um equilíbrio entre o influxo dos capitais estrangeiros e os incentivos à indústria nacional estatal e privada. As divergências de então se centraram muito mais na adesão ou não às bandeiras de justiça social (que levaram às sublevações contra Getúlio em 1945 e 1954, e contra Jango em 1961 e 1964) do que à manutenção de tal paradigma nacional-desenvolvimentista.
Da abertura democrática para cá, o lócus dos governos brasileiros se deslocou da inclinação nacional-desenvolvimentista para a liberal, e o debate político das esquerdas sofreu igualmente uma inflexão abrupta, com as demandas das liberdades democráticas e de ínfimos ganhos sociais sobrepondo largamente a centralidade da questão nacional. Baluarte desta nova agenda hegemônica, que hoje é reforçada com os temperos individualistas e fragmentários do identitarismo pós-moderno, o Partido dos Trabalhadores assumiu a hegemonia do campo progressista, e grande parte dos quadros nacionalistas dos antigos partidos comunistas e mesmo dos antigos segmentos trabalhistas se submeteu a essa nova ordem.
Desde a pré-campanha para as eleições de 2018, a candidatura de Ciro Gomes tem um norte bastante claro em seu Projeto Nacional de Desenvolvimento: a retomada da centralidade da questão nacional, conjugando novamente as plataformas de soberania nacional, desenvolvimento econômico e justiça social. Questiona, portanto, não apenas a inclinação econômica abertamente liberal dos governos imperantes nas últimas três décadas no Brasil, como também o próprio paradigma reinante em nossas esquerdas, que preferiram a submissão aos limites das liberdades democráticas e das escassas conquistas sociais à ousadia de retomada da agenda que fez do Brasil um dos gigantes do século XX.
Essa ousadia teve Leonel Brizola na década de 1980, reorganizando os remanescentes quadros do nacionalismo popular no PDT e estabelecendo um contraponto desenvolvimentista de esquerda à ordem dominante. Da mesma forma, décadas antes Getúlio não se contentou o paradigma nacional-desenvolvimentista conservador ensejado por lideranças da caserna e da burguesia nacional, e ousou organizar o PTB para radicalizar as bandeiras da justiça social, na esteira dos acontecimentos que levariam ao seu posterior suicídio em 1954.
Se enganam, portanto, aqueles que apregoam a submissão à agenda lulista como forma una e irreversível de combate ao neoliberalismo fascistizante de Jair Bolsonaro. Afinal, foi essa mesma submissão que forjou os elementos que permitiram a ascensão do capitão. Além do mais, é muito pouco crível que eventual desistência acarretaria uma migração massiva de votos para a candidatura de Lula no primeiro turno: o mais provável seria exatamente que a hoje “terceira via” passasse a ser ocupada por mais um quadro de orientação liberal, com largo respaldo dos partidos tradicionais de centro que insistem em ensejar uma alternativa à Lula e Bolsonaro.
Vale lembrar que ao longo do segundo mandato de Lula a formação do Bloco de Esquerda, liderado por PDT, PSB e PCdoB, visou exatamente estabelecer um contraponto nacionalista e popular à orientação liberal predominante em largos setores do governo. Duas das principais lideranças do bloco de então eram Ciro Gomes e Aldo Rebelo, hoje sustentáculos inabaláveis da proposição de um novo Projeto Nacional de Desenvolvimento para o Brasil, materializado na campanha presidencial de Ciro, mas também em candidaturas nacionalistas proporcionais tais como as de Aldo Rebelo ao Senado e do sindicalista Antônio Neto à Câmara dos Deputados em São Paulo.
Em síntese, as divergências diante da candidatura de Ciro entre os dispersos militantes e organizações políticas alinhados com o paradigma do nacionalismo de esquerda demonstram não só um desalinhamento de tática eleitoral, mas também de perspectiva estratégica de construção de uma força política popular embasada na defesa da soberania e desenvolvimento de nosso país. É sobre essa segunda tarefa que a militância nacionalista defensora do PND de Ciro se debruça no presente momento, rompendo com o paradigma que há três décadas vêm estagnando os avanços do campo progressista no Brasil: o da hegemonia da agenda liberal e fragmentária sobre a da questão nacional.
Longe de enfraquecer a oposição ao governo e à candidatura de Bolsonaro, a candidatura de Ciro e o PND questionam seus principais sustentáculos, disputam parte de uma base social hoje por demais distante da agenda de Lula e, principalmente, acumulam forças na reorganização das forças nacionalistas populares no quadro político nacional. E é apenas mantendo a firmeza de sua tática eleitoral e a perspectiva estratégica de fortalecimento do campo nacionalista que a candidatura de Ciro há de cumprir seu dever, preparando sua militância não apenas para a tarefa fundamental de 2022, mas também para os decisivos embates que marcarão o ambiente político e social brasileiro nas próximas décadas.
Por Tiago Nogara, professor de Relações Internacionais
Texto publicado originalmente em Portal Disparada
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Este texto é opinativo e não reflete, necessariamente, a opinião do site Brasil Independente.
Foto: Reprodução