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“Votar em Lula por medo de Bolsonaro” – Estamos vivendo momentos de terror, em que temos de escolher alguém para presidir o Brasil por medo de continuarmos com o pior efeito colateral de nossa história, ter Jair Bolsonaro na presidência da república. Isso traz à minha cabeça um pouco da história dos sertanejos, como eu.
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Momentos em que, quando não migrávamos para o Sudeste (ou outras regiões) para buscar maneiras de sobreviver, tínhamos que continuar vivendo sem condições básicas —por exemplo, ter água potável, o que gerava uma série de danos, como uma taxa elevada de mortalidade infantil.
Nessas situações em que nos falta o básico, a gente se torna refém de políticos que oferecem alguma coisa para nos mantermos vivos, como um caminhão pipa de água, para saciar nossa sede.
E isso gera uma dependência enorme, pois nos dá medo de outro político assumir o poder e não nos abastecer, deixar de saciar nossas necessidades básicas. É uma “sacada inteligentíssima” por parte de alguns políticos, pois o gestor permanece como um herói insubstituível, devido ao medo que as pessoas têm de voltar a sofrer com a falta de necessidades básicas.
Mas sempre chega um momento em que outro político assume o poder e não dá a devida atenção ao povo carente, pois não foram essas pessoas que o elegeram. Bom, assim, surge em nossa saudosa memória aquele momento em que não tínhamos sede, pois havia alguém que “cuidava do povo”. Nessa hora, buscamos o retorno do grande herói!
No entanto, nesse momento nós deveríamos perceber que, na verdade, essa é a estratégia mais cruel que existe, pois é desumano deixar uma população a mercê da boa vontade de uma pessoa ou de um grupo que esteja no poder. Mas políticos não mudam de estratégia pois sabem que a melhor forma de se manter no poder é levar um caminhão pipa com água para quem tem sede, em vez de tornar o povo independente e com condições de ter uma vida digna, inclusive de escolha nas eleições.
Esse é um exemplo do que estamos vivendo agora, mas em escala muito maior, que vai além do meu sertão. Uma grande parte da nação está com sede, com fome, carente de necessidades básicas.
E o que surge? O grande herói. Lula vai ao telejornal de maior audiência da nação para dizer que vai “trazer picanha e cerveja” para o nosso povo, pois, quando ele estava no poder, era assim, tinha comida e uma “cervejinha”.
Com essa estratégia, Lula encantou parte da sociedade, pois falou a língua do povo, falou de futebol, da agricultura familiar, chamou a apresentadora para conhecer um assentamento do Movimento Sem Terra e, inclusive, citou Paulo Freire e a necessidade de união.
Wow, foi brilhante na argumentação!
Mas, ao mesmo tempo, foi medíocre e jogou em nossa cara que não temos condições de pensar além do básico!
Lula não fez uma proposta concreta para tornar o país uma nação competitiva, sem dependência de países desenvolvidos cientificamente. Só levou para a sociedade a certeza de que dependemos dele para sair desse momento de terror bolsonarista. Essa é a grande jogada, vermos o Lula como o grande salvador. E, se não pensarmos assim, corremos o risco de sermos tratados como responsáveis por eleger o Bolsonaro. É uma sinuca de bico, que nos tira a liberdade e o nosso direito de ver outros candidatos como opção para votar.
Lula zombou de nossa cara, disse que iria resolver todos os problemas por meio de diálogo com os demais poderes, sem antes apresentar uma proposta de governo com fundamentos. Mas nós sabemos que as conversas na escuridão dos corredores da política terminam com a entrega do futuro da nação aos vampiros que vivem sugando o sangue do povo brasileiro.
Claro que se eu estivesse do outro lado lendo este artigo, iria perguntar: “E os feitos de Lula enquanto presidente?”
Vou citar alguns, como a ampliação das universidades e o maior acesso de pessoas que foram historicamente isoladas da oportunidade à educação formal. Lula também aumentou a distribuição de renda aos mais necessitados, algo que deu esperança e dignidade a muitas famílias, entre outras ações benéficas. Inclusive, eu sou uma dessas pessoas que jamais imaginava que poderia chegar à universidade e, em 2002, aos 20 anos, passei a ousar e lutar por um futuro melhor graças à educação.
Nesse tempo, eu olhava para Lula como a grande esperança da nação, como alguém que conseguiu chegar em um lugar no qual ninguém que vem de nossa região sofrida chegou. Isso transformou a minha forma de olhar para a vida. Sempre falei que sou “uma cria” de projetos PTistas que deram esperança para a sociedade mais pobre emergir e ocupar espaços nunca imaginados para pessoas como nós.
É aí que surge o maior perigo, quando olhamos com romantismo e paramos de ver as coisas de forma crítica. Consequentemente, apoiamos tudo o que é dito por Lula e a cúpula que o cerca, formada por muitas pessoas, inclusive rasas, incompetentes e arrogantes, enquanto muitos de boas ideias e capacidade são isolados.
Caro leitor, olhe para nós, brasileiros, que em um período de pandemia tão trágico provocado pela covid-19 fomos quase totalmente dependentes da importação de insumos e tecnologias. Você acha que isso é resultado apenas de projetos (ou falta deles) recentes?
Que a culpa é apenas do Bolsonaro?
Apesar de o atual presidente ser alguém que carrega o que há de pior em um ser humano, pode ter certeza que ele não é o único a ter colocado o país nas trevas que vivemos! Essa é a soma do descaso e desrespeito à inteligência e à ciência brasileira, que sempre existiu e foi intensificada no período do impeachment de Dilma Rousseff. Quando Michel Temer assumiu a presidência, umas das primeiras ações foi o corte nos investimentos em ciência e tecnologia, entre outras coisas que levaram o país a regredir absurdamente nessas áreas.
Mas, veja bem, quem está ao lado de Lula neste momento? É incrível que boa parte daqueles que apoiaram o impeachment é aliada do PT agora. Isso não é zombar de nossa cara?!
Você pode dizer que política é isso, negociações com os diferentes. Nisso eu concordo! No entanto, tudo tem limite. Por exemplo, nós não podemos em um momento condenar alguém que faz certas negociatas e em outro a gente falar que “tudo bem”, “isso é normal”. É exatamente isso que Lula e o PT estão fazendo, “condenando” os adversários por coisas que o PT faz constantemente!
Vamos além! Você acha que Lula não apresentou propostas concretas no Jornal Nacional por falta de tempo? Bom, quebrou a cara se pensou assim, pois os projetos do PT para o Brasil foram rasos na TV e são assim fora dela, sem encarar a realidade histórica que vivemos, sem entender que o mundo está no momento do desenvolvimento científico e tecnológico.
Hoje, não podemos olhar para a preservação ambiental sem encarar que precisamos fomentar a maior produção agrícola em menores espaços, em desenvolver tecnologias para acompanhar o desmatamento em tempo real e agir de forma rápida e cirúrgica. A educação moderna não é mais por meio da escrita com giz no quadro negro, com um professor “cuspindo” informações. A economia está cada vez mais necessitada de geração de conhecimento e produtos modernos e renováveis.
Esses são apenas uns poucos exemplos, pois o Brasil está vivendo no século passado em termos científicos, o que nos torna vassalos, dependentes de países que são científica e tecnologicamente avançados.
E qual é a nossa reação? É a de votar no Lula por medo de continuar com o Bolsonaro? Ou votar por que o Lula é “charmoso e encantador politicamente”? Ou por que ele fala a língua do povo e promete picanha e cerveja?
Inclusive, caro leitor, ao chegar até aqui você pode fazer mais uma pergunta, por exemplo, se eu não acho que a luta contra a fome não deve ser o carro chefe da política?
Bom, esse tema tem que ser mais bem explorado. Eu sempre digo que não existe dignidade quando temos fome e cito o exemplo de Jesus Cristo, que antes de ensinar ofereceu o pão e o peixe, pois com fome a sociedade come até a carne do pastor.
Então, ninguém venha com essa de que vai votar no Lula porque ele quer acabar com a fome, pois isso é superficial e volta àquela manobra citada no começo desse texto.
Eu sei muito bem o que é sofrer com a falta de necessidades básicas para sobreviver, e sei também da importância de políticas públicas, mas não romantizo como se estivéssemos na eterna busca por um provedor do pão e vinho (ou cervejinha).
Dessa forma, acredito que nosso voto valerá muito mais a pena se for em alguém que tem projetos factíveis e modernos para a nação. Que trate da fome e do trabalho infantil, por exemplo, como chagas sociais, mas que não use disso para tentar nos amedrontar e tirar nossa coragem de buscar projetos de forma crítica de qualquer cidadão que busque assumir cargos públicos.
Por fim, é nesse momento eleitoral que não podemos nos calar ou continuar defendendo uma ala que quer reassumir o Brasil com ideias superficiais —ou aparecendo como salvadora da nação. Então, espero que o Lula e o PT, assim como os demais candidatos e partidos, nos respeitem e apresentem projetos concretos e modernos, pois estamos cansados de ladainhas baratas.
Por Gustavo Cabral, imunologista PhD pela USP (Universidade de São Paulo), pós-doutorado pela Universidade de Oxford (Inglaterra) e pela Universidade de Berna (Suíça), pesquisador da USP/Fapesp
(Texto originalmente publicado em UOL)
(Foto: Montagem/Reprodução)