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Teatro da caça ao fascismo – O maior problema do país, agora, é a violência. Quando ela não sangra os cidadãos brasileiros com sequestros, furtos e estupros, ela os extermina sem hora marcada, sem critério, sem controle e sem impedimento. Precisamos desnaturalizar os revezes trazidos pela insegurança que se propaga nacionalmente com a profissionalização empresarial do crime e isso passa por recolocá-la no centro de nossas urgências.
Trazer o assunto ao centro do debate nacional não é aceitar as abordagens fáceis e frágeis que predominam no debate público e que a correlaciona ao fantasma do tráfico de drogas, apontado como fonte de abastecimento do crime organizado. O foco no tráfico de drogas muda a hierarquia de importância do combate e instila discussões sobre o que fazer com o contingente de brasileiros que entram para o staff do narcotráfico e por que o fazem. Aí está uma das raízes de nossas confusões, porque os espectros ideológicos que formam a opinião pública nacional terminam por se encantar com a retórica e com os rótulos, mais do que com a efetividade da tarefa.
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Afinal, ao contrário do que defendem porta-vozes da direita, a fonte do problema da insegurança não é a impunidade. Nossas cadeias estão abarrotadas de criminosos e servem muito mais como universidades do crime do que como centros de reabilitação. Por outro lado, a fantasia progressista de reduzir o problema à abstração das estruturas reprodutoras de desigualdades é também meramente retórica e incapaz de explicar como a maioria dos que são vítimas das estruturas não integram o mundo crime – sendo, na verdade, os mais oprimidos pela criminalidade organizada – nem como as oportunidades crescentes com a cultura dos programas sociais não freia a proliferação de células de grandes facções em todos os cantos do país em que há pobreza.
Sob essas perspectivas, vivemos a confusão adubada. Se a saída é prender mais gente, estamos fornecendo mais insumos à indústria profissional do crime instalada nos presídios. Se a saída é culpar as estruturas e dificultar a superlotação carcerária, a sensação transmitida de incentivo ao crime é inevitável e com potencial de agravar o que se pretende eliminar.
O caráter sistemático e articulado com que tem se manifestado o pacote de crimes que assola grandes, médias e pequenas cidades revela como a violência está associada direta e indiretamente à consolidação do poder dos criminosos. O reflexo mais perigoso dessa consolidação é a para-institucionalização do crime organizado. Mas o fator mais simples e constrangedor desse empoderamento meliante é que quase não é discutido: a posse franca e facilitada de armas.
Apenas uma campanha que sopre uma corrente de opinião para constranger o armamento irregular no país pode iniciar a construção dos muros contra o poderio dos criminosos. E só o presidente da República tem poder o bastante para isso.
Mas o país chafurda no desvio de atenção e no desperdício de energia. As autoridades – especialmente, as do executivo e do judiciário – têm se regozijado com a popularidade recente entre jornalistas inteiramente alheios à agudez do problema da violência e ainda excitados por uma revanche implacável contra o bolsonarismo, e é para eles que essas autoridades parecem trabalhar. A lua de mel entre a imprensa e os poderes tem se dado sobre temas como a perseguição ao fascismo e a proteção da democracia, tendo como desdobramentos inquéritos e comissões – um gasto sem fim de tempo e de recursos com problemas de segunda ordem.
Não é que a resguardar a democracia dos discursos e práticas de sedição seja, por si, um tema de segunda ordem. Mas a obsessão por punir vândalos e incautos, que se pensam patriotas e que foram usados por personagens que perderam as eleições dentro das regras do jogo, revela uma desconexão do que o Brasil está vivendo de fato. Sobretudo quando os assassinatos com requintes de brutalidade praticados no contexto de guerras entre facções são explícitos e intimidadores e resvalam em qualquer um a qualquer momento. É como se ministros e e comunicadores assumissem desavergonhadamente maior sensibilidade pelas vidraças e poltronas do Supremo do que pelas vidas humanas ceifadas de brasileiros.
O cacoete dos canais de notícia afinados a essa agenda de prioridade “anti-fascista” é, na verdade, repetir chavões estatísticos quanto à violência policial, dando tom de escândalo ao fato, porém sem rastrear o elemento básico de que a violência policial cresce onde e quando o arsenal do crime aumenta. Tome o caso mais recente, o do estado da Bahia.
Desde que o Comando Vermelho exportou suas atividades do Rio para a capital baiana e outras cidades do entorno, há morticínio e extorsão nos bairros pobres e vulneráveis, assaltos e sequestros nos bairros de classe média e medo em todos os cantos.
O histórico é por si só ilustrativo. Em 2019, o CV se instalou na Bahia e passou a rivalizar com outras facções, entre as quais uma das mais robustas, o Bonde do Maluco (BDM), pelo controle dos pontos de venda de drogas e de exploração arbitrária das comunidades pobres. O governo do estado não foi suficientemente enérgico contra esse avanço. Em particular, o governador Rui Costa, cometeu graves erros. Ressabiado pelas críticas da imprensa e das esquerdas contra a infeliz frase pronunciada no contexto da chacina dos 12 do Cabula, quando o mandatário comparou o policial diante do bandido ao artilheiro do futebol diante do gol, estando, ademais, sob o alarmante descontrole de polícias ultra-bolsonarizadas e incitadas pela extrema direita, e preocupado em fazer um sucessor ao cargo, Costa não prestou a devida ênfase em matéria de política de segurança contra a marcha da criminalidade profissional no estado.
Some-se a isso o infortúnio pandêmico que, por si só, desorganizou a receita e o orçamento dos estados. Em 2020, o governo estadual teve seu orçamento destinado majoritariamente à crise sanitária. As polícias, sub-esquipadas e sem renovação de quadros, sofreram uma pressão catabólica sem igual. Em paralelo, o recrutamento ao crime foi adquirindo escala e as facções foram aprimorando suas ambições e avolumando e reeducando seu contingente.
Com um discurso tribal penetrante, as quadrilhas passaram a se articular como por valores de uma cultura de antagonismo radical a homens fardados e aos símbolos e gestos das facções rivais. Enfeitaram a agressividade com um senso de moralidade difuso – que vêm sendo usado para justificar extorsões a comerciantes e trabalhadores como recompensa pela “proteção” da comunidade. Isso tudo é reflexo da fusão do modus do tráfico com o das milícias, que vem prosperando no Rio e, qual metástase, se instalando em Salvador.
O sumo da coisa é o que se vive em várias cidades baianas. São 417 municípios invadidos ou sondados pelo crime organizado. Jequié consta como a mais violenta cidade do país. Seguem a mesma senda, Feira de Santana, Vitória da Conquista, Camaçari, Jacobina… Salvador já está vive a interrupção de atividades públicas, como a Universidade Federal da Bahia e as consequências nas enfermarias dos hospitais do estado. Também, inúmeras escolas públicas foram ocupadas por bandidos que converteram alunos em correligionários e os empoderaram contra professores e diretores – estes já perderam inteiramente o controle nas unidades de trabalho tomadas pelas facções.
Estamos em guerra. E guerra demanda uma atitude diferente por parte do Estado. Mas os ministros identitários do governo e os caça-fascistas, da imprensa e do STF, são laterais quanto ao problema do tráfico de armas. Falta-nos o líder, que, hoje, passeia pelo mundo, bancando um Mandela determinado a extirpar o apartheid dos outros.
O que libera o cio da cadela do fascismo é a fraqueza da democracia em atender as necessidades materiais, não apenas as simbólicas, dos indivíduos. Os discursos e práticas de ódio e os atalhos autoritários prosperam na falta das elites em prover rumo à embarcação nacional e isso requer sensibilidade ao que é urgente para as massas, não para as próprias elites. Enquanto o governo não investir no combate à proliferação de armas ilegais no país, e permanecer enfeitiçado por dar o troco no reacionarismo teatralizado, o nosso maior problema permanecerá sob a inércia da procrastinação e nossas vidas seguirão ameaçadas. E é justamente nesse ambiente de impasse face o drama real das pessoas que o fascismo alimenta sua longevidade.
Por Tiago Medeiros, doutor em Filosofia, professor do Instituto Federal da Bahia, membro do Laboratório de Estudos Brasil Profundo (LABRAP)
*Texto publicado originalmente no portal Disparada
(Foto: Reprodução)
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Este texto é opinativo e não reflete, necessariamente, a opinião do site Brasil Independente